Democracia com direitos sociais deve ser fortalecida, diz Boaventura de Sousa Santos

boaventura_portal.jpg

“Vivemos em uma sociedade politicamente democrática e socialmente fascista”. Essa afirmação foi feita pelo sociólogo, professor e intelectual português Boaventura de Sousa Santos, que proferiu aula magna com o tema Democracia em tempos incertos dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda e do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social, por meio do Grupo de Pesquisa Mídia e Narrativa. A conferência, que aconteceu na quarta-feira, 26 de abril, no Campus Coração Eucarístico, também integrou as comemorações dos 10 anos do mestrado.

Na ocasião, representando o reitor da Universidade, professor Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, a professora Cláudia Siqueira Campos, diretora da Faculdade de Comunicação e Artes (FCA), ressaltou a importância do evento para abordar a soberania popular em governos democráticos e destacou a oportunidade ofertada aos alunos de ouvir um reconhecido especialista no tema. “A obra de Boaventura nos convida a problematizar a democracia como campo de luta e participação popular. […] Aqui [na academia], o entendimento do tema se equilibra através de um paradoxo: se a prática do estado democrático dá lugar a concepções que preconizam a gestão institucional da inclusão e da justiça social, por outro lado ela rejeita o exercício da soberania popular, preceito da democracia”, disse ela. “É exatamente aí, no centro desta questão que a obra de Boaventura contribui para a reflexão sobre o tema em variados campos do conhecimento. Não tenho dúvidas de que este é um momento singular para alunos, professores e funcionários da PUC Minas”, assinalou a diretora da FCA,  que também registrou a presença da ex-ministra das Mulheres, da Igualdade Social e dos Direitos Humanos, Nilma Lino Gomes, que atuou no governo de Dilma Rousseff.

Em seguida, o professor Ércio do Carmo Sena Cardoso, coordenador do Curso de Jornalismo, pontuou que “a aula magna é parte do esforço de trazer para os nossos cursos dimensões das práticas sociais”. “Nos estudos da comunicação entendemos que as mediações, por serem abertas, mais compartilhadas e mais vulneráveis, estão sujeitas a abusos, e é por isso que a palavra democracia, em tempos incertos, sofre agressões em sentidos diversos”, observou o professor.

Em sua conferência, o professor Boaventura de Sousa Santos destacou a importância de abordar o tema em um momento complexo para o Brasil e para todo o mundo. “Algo está acontecendo no mundo que põe em xeque algumas ideias que nos últimos 45 anos ou 50 anos pensávamos que eram conquistas civilizacionais e sobre as quais não haveria retrocesso. A democracia é uma delas”, disse, apresentando seu país, Portugal, como um dos mais recentes a conquistar o direito de ter o governo escolhido pelo povo – 43 anos -, após passar 48 anos sob a ditadura. O convidado também frisou a relevância desse tipo de conferência estar sendo realizada no Brasil pelo fato de o país estar no único continente em que o conceito de socialismo sobreviveu no século XXI. “Era o único continente que falava de socialismo neste século, já que o termo tinha desaparecido da Europa, da África e da Ásia, e não é atoa que foi neste país que surgiu o Fórum Social Mundial em 2001”, observou.

Boaventura questionou as rápidas mudanças promovidas pelo governo interino de Michel Temer após o impeachment da presidente Dilma Rousseff. “Como aconteceu tudo tão rápido? Como uma medida provisória publicada um dia após o impeachment pode mudar tudo? Como Macri [Mauricio Macri, presidente da Argentina], conseguiu, em pouco tempo após assumir a presidência, aumentar em 10% ou 20% a população abaixo da linha da pobreza? Essa discussão nos cabe para entender a democracia nesses tempos incertos e nos faz fundamentar a democracia para que ela seja mais forte, tenha mais energia e força para lutar contra seus inimigos”, conclamou.

Segundo o intelectual, desde o século XVI as sociedades são divididas entre uma sociabilidade metropolitana, onde há direitos e democracia, e um outro lado da linha invisível, onde estão aqueles que, efetivamente, não têm a possibilidade de usufruir seu direito. “São aqueles que vivem em sociabilidade colonial. As mulheres, durante muito tempo, viveram em sociabilidade colonial, porque não eram verdadeiramente humanas. Os modos coloniais eram, obviamente, sub-humanos. Portanto, todas as ideias que já se desenvolveram nas teorias sociais, a democracia ou o direito não se aplicaram às populações que estavam sujeitas ao colonialismo”, disse. O sociólogo completou, afirmando que as sociedades em que vivemos são “capitalistas, colonialistas e patriarcais e essas três denominações atuam em articulação — e é muito importante saber que atuam assim —, e os movimentos que lutam contra a dominação estão separados. Ou seja, a dominação está unida e os que lutam contra a dominação estão separados. É um dos grandes problemas que enfrentamos”, pontuou.

O sociólogo português alegou que a fragilidade da democracia se comprova por fatos como a eleição de Hitler, que ele considera um “suicídio da democracia. Mas nós o elegemos, portanto, talvez sejamos também parte do problema e não apenas da solução”, disse, destacando a necessidade de analisar o contexto.

Apontando a escolha democrática como um equilíbrio entre medo e esperança, Boaventura afirmou que atualmente o medo sobrepõe à esperança do povo. “Este é um momento em que os governos autoritários ou ditatoriais se aproveitam da fragilidade para fazer revoluções, que muitas vezes não partem de um consenso de ninguém. As decisões são autoritárias. É preciso lutar contra o medo e para isso é preciso ter esperança e fazer um diagnóstico radical do que está ocorrendo”, afirmou, ressaltando a necessidade de se buscar novas soluções para o momento atual.

De acordo com ele, os momentos de crise alimentam expectativas negativas. “Na perspectiva da origem da palavra, crise é um ponto problemático em um sistema que nos dá a possibilidade de cura. Portanto, as crises têm algo de positivo em si mesmo, que deve ser acolhido pela nossa sociedade. A menos que a crise deixe de ser transitória e passe a ser permanente. E a mudança neste ponto é que a crise transitória é explicável. Quando a crise é permanente ela não tem que ser explicada, mas passa a explicar tudo. Cortou os funcionários? É a crise. Privatiza-se a educação? É a crise. Privatiza-se a saúde? É a crise. Terceiriza-se toda a economia para evitar os direitos sociais? É a crise. É a crise política. Essa crise é perigosa porque não deixa oportunidades e permite que muitas coisas aconteçam com uma certa naturalidade. A crise deixa de ser uma variável dependente para ser uma variável independente”, disse. “Antônio Gramsci dizia que ‘em tempos de transição, quando o novo ainda não chegou totalmente e o velho ainda não acabou definitivamente, é um tempo de monstros, de formações mórbidas’ e temos que pensar alguns desses monstros conosco”, afirmou.

Segundo ele, formas de dominação e violência também ocorrem em nome de processos democráticos. “Os militares que matam no Iêmen cometem crimes contra a humanidade em nome do processo democrático. Matam na Síria, na Líbia, matam funerais, matam casamentos, matam inocentes. É o poder extremo, que se exerce através de uma forma extremamente unilateral. Não numa ditadura sanguinária, mas num país que é o pai da democracia, depois da Inglaterra”, disse, referindo-se aos Estados Unidos.

O intelectual português também ressaltou mais um fenômeno perigoso: a pós-democracia, em que os conflitos deixaram de ser apenas conflitos e passaram a assumir o papel de espetáculos midiáticos. “Os grandes conflitos na democracia deixaram de ser substantivos, sobre temas políticos e de política. O espaço midiático sujeito a uma lógica da comunicação e da informação e não sujeito à lógica da ciência política e das doutrinas políticas”, disse.

De acordo com Boaventura, há outro “pós” que vem alimentando a pós-democracia. “Existe outro ‘pós’ que está se propagando substancialmente, que é o conceito de pós-verdade. Em 2015, a palavra do ano no dicionário Oxford foi a pós-verdade. Foi a palavra que teve 2.000% de aumento nos textos de 2017. A pós-verdade está muito ligada aos conceitos de comunicação. É a ideia da distinção entre convicção e persuasão. A convicção é a ideia que já existe em mim de que as coisas são assim e a persuasão, que é plena para a minha adesão, é buscar conversar. A pós-verdade não tem a ver com fatos, é uma grande máquina de adesão a pequenas frases que surgem na televisão, nos media , que visam uma manipulação das pessoas de maneira que os fatos que surgirem em seguida não têm importância”, afirmou ele, ressaltando casos de virais que chegam nos computadores e celulares e têm como maiores alvos as populações desinformadas e com tendência política à direita. “Os profissionais da comunicação sabem que o sistema de algoritmos faz algumas mensagens serem propagadas com maior rapidez e maior facilidade, de forma que o que importa é a repercussão que suscita e não os fatos que amarram as informações”, disse.

Boaventura finalizou a conferência destacando o Brasil como uma sociedade colonial “que não sabe viver sem a classe servil” e ressaltou a necessidade de lutar pela democracia. “Nós precisamos de uma democracia de alta intensidade, uma luta democrática sempre pacífica, dentro e fora das instituições, uma democracia revolucionária, para garantir os direitos, para ser colocada em prática. E a revolução tem que ser democratizada para não terminar em outra disputa assassina, como aconteceu na Revolução Russa. Para sermos realistas, temos que ser utópicos. Temos que estar unidos. Se estamos quilombolas para um lado, indígenas para o outro, direitos humanos para outro, não vamos alcançar o sucesso enquanto a sociedade capitalista, colonialista e patriarcal se une.  Não há nenhuma luta quilombola que não seja também feminista e anticapitalista; assim como não há nenhuma luta anticapitalista que não seja simultaneamente anticolonialista e antipatriarcal”, encerrou.

Fonte: Portal PUC Minas