José María Castillo: Quem confia, hoje, no que se diz no parlamento ou na catedral?

jose-maria-castillo“O perigo mais sério, que ameaça políticos e pregadores, não está em que troquem de papéis. O mais grave, que ameaça a todos, é a hipocrisia. Algo em que quase ninguém pensa, mas no qual quase todos incorremos com muita frequência”, escreve o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado por Religión Digital, em  03 de abril de 2018. A tradução é do Cepat (Centro de Promoção de Agentes de Transformação).

Eis o artigo.

Os políticos governam. Os pregadores exortam. Em teoria, a coisa é assim. Na prática, sabemos que muitas vezes acontecem deslizamentos, do governo à pregação. Ou, ao contrário, sabemos que abundam os pregadores que, em lugar de exortar, dedicam-se a mandar.

Por isso, não é raro ver, no hemiciclo das Cortes, parlamentares que, ao invés de decidir o que convém para o bem da cidadania (argumentando devidamente o que decidem), dedicam-se a pronunciar autênticos sermões, com suas promessas e ameaças, como corresponde a um bom pregador. E se, em vez de você ir ao Parlamento, vai à catedral ou à paróquia, é possível que encontre o clérigo de turno impondo obrigações ou proibindo liberdades, que, se fizessem caso dele, os fiéis sairiam da igreja com a cabeça baixa e o ânimo retraído, suave e humilde, como aquele que é levado no furgão de Alcalá-Meco [centro penitenciário].

Contudo, se vamos ao fundo do problema, o perigo mais sério, que ameaça políticos e pregadores, não está em que troquem de papéis. O mais grave, que ameaça a todos, é a hipocrisia. Algo em que quase ninguém pensa, mas no qual quase todos incorremos com muita frequência. E não pense que a “hipocrisia” é coisa fútil. Não importa! Nada disso. A hypokrisis, da qual falavam os gregos, pertence originalmente à linguagem teatral. De modo que “a representação teatral” acabou por significar (no sentido negativo) “hipocrisia” (U. Wilckens). Daí que o verbo hykrynomai significa “representar um papel”.

Pois bem, colocadas as coisas desse modo, isto nos leva a pensar que políticos e pregadores são personagens que precisam caminhar fazendo autênticos equilíbrios, para não acabar sendo “hipócritas comediantes”, que seguem pela vida representando “o grande teatro do mundo”. Indivíduos que, se não são heroicamente autênticos, acabam sendo artistas da mentira, da corrupção e do engano. E destaco o heroísmo de autenticidade que aqueles que se dedicam à representação do que convém a nós, “cidadãos” e “crentes”, necessitam.

No caso dos políticos, a tentação é forte, muito forte. Porque o poder e o dinheiro têm uma força de sedução que não é fácil resistir com a integridade que está em jogo quando o que se decide são os direitos, a dignidade, a saúde, a cultura… da sociedade inteira.

E no caso dos pregadores, junto à tentação do poder e do dinheiro (que também está presente neles), acrescenta-se outra tentação: a fidelidade a fórmulas “dogmáticas”, que foram necessárias e foram vistas como intocáveis em tempos remotos.

Há “dogmas” que foram imperiosos há quinze séculos, mas que hoje já nem são entendidos, nem interessam sem a devida e necessária hermenêutica (interpretação). Mas, isso é justamente o que faz com que o pregador de turno fale a partir de uma “intemporalidade”, que oferece aos pacientes fiéis alguns temas e uma linguagem que pôde interessar há 1.500 anos, mas que agora não é compreensível, nem interessa, nem responde às necessidades que hoje temos e à linguagem com a qual nos comunicamos.

Consequência: políticos e pregadores perderam, quase todos, sua credibilidade. Quem confia, hoje, no que se diz no parlamento ou na catedral? Ao máximo que chegamos é a que os políticos se aliem com os “noivos da morte”. Assim, política e religião interessam como notícia. Contudo, mais que isso, para quê? Ou para quem?

Fonte: IHU Unisinos