A farsa da intervenção: situação de guerra continua cada vez pior na Rocinha

Frei Douglas da Silva, há cerca de um mês, ao terminar a celebração na Rua Um, foi abordado por um rapaz armado, que lhe pediu que esperasse um pouco para descer, pois os “alemães” (Policiais do Bope), estavam subindo. Enquanto o espaço em frente à igreja se enchia de homens fortemente armados, ele e duas senhoras tentavam desesperadamente fechar o cadeado da igreja. Depois de mais de uma hora refugiado na casa de uma moradora, o mesmo rapaz foi gentilmente avisar ao frei que podia descer”, escrevem Frei Sandro Roberto da Costa, pároco da Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, coordenador da Fraternidade e professor no Instituto Teológico Franciscano, e Frei Douglas Monteiro da Silva, frade de profissão temporária no tempo do Ano Missionário e animador do Serviço Vocacional local, em artigo publicado por Franciscanos, 11-04-2018.

Eis o artigo.

Como pároco da Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem da Rocinha, Rio de Janeiro, tenho recebido, de amigos e confrades, muitas perguntas sobre como vai a situação da comunidade de fé, a participação dos fiéis, as celebrações. Já escrevi sobre a realidade geral da Comunidade, a situação social, política, etc., que só piorou desde então. Agora escrevo sobre a realidade da Paróquia. Estamos sobrevivendo na medida do possível. A situação de guerra continua cada vez pior. A famigerada Intervenção Federal, como já sabíamos, até agora não serviu para nada, ao menos na Rocinha. O que aumentou muito foram os confrontos entre os policiais (Bope e Choque), e os traficantes. Oficialmente, desde 17 de setembro, contabilizam-se 53 mortos e 19 “desaparecidos”. Os relatos dos moradores, que presenciam as barbaridades de ambos os lados, dizem que o número é muito maior. Isso tem afetado muito a vida das pessoas, e, consequentemente, as atividades pastorais.

As pessoas têm medo de sair de casa. Seja por causa dos confrontos que acontecem a qualquer hora do dia e da noite, seja pelo medo de terem suas casas invadidas pelos grupos em fuga ou pela polícia à caça de bandidos. Desde setembro do ano passado, muitas crianças abandonaram a catequese. Encerramos a turma do terceiro ano este ano com cerca de 180 crianças fazendo a primeira comunhão. Poderíamos ter tido mais do que o dobro disso. Em vários domingos, durante os encontros, as crianças e catequistas tiveram que se atirar debaixo das carteiras, para se proteger dos tiros. Os mais novos ficavam visivelmente traumatizados. Mães e pais vinham desesperados buscar seus filhos. O mesmo aconteceu com o catecumenato. Tínhamos cerca de 190 inscritos. A muito custo conseguimos segurar os pouco mais de 100 que serão crismados em maio. Muitas famílias não inscreveram seus filhos na catequese neste ano, e alguns disseram explicitamente que o motivo é terem medo de sair de casa domingo de manhã com suas crianças.

As reuniões das pastorais e formação também foram afetadas. A Paróquia está localizada numa área relativamente segura, mas o povo que a frequenta mora em meio aos becos e vielas escuras, dominadas pelos grupos armados, e a qualquer hora pode estourar um tiroteio. Os relatos dos moradores, principalmente em confissão, são os mais terríveis possíveis. Criamos, no início do ano, o Grupo das Mães que Rezam por seus Filhos. Entre 40 e 50 mulheres (alguns homens) se reúnem, para rezar por seus filhos e parentes, aos domingos à tarde. Várias perderam seus filhos, netos, sobrinhos, nos confrontos, muitas outras têm seus filhos envolvidos com o tráfico, e sofrem desesperadamente com isso. Na quinta-feira Santa lavamos os pés de 12 dessas mães.

A vida pastoral nas “capelas” (comunidades), também foi profundamente afetada. As celebrações semanais da Palavra, dirigidas pelos ministros, ou a missa, uma vez por mês, nem sempre podem ser realizadas. Há vários relatos de ministros que tiveram que se esconder para escapar do confronto armado. Eu já fiquei algumas vezes em meio ao fogo cruzado, indo celebrar a Missa, ou indo visitar doentes.

Frei Douglas da Silva, há cerca de um mês, ao terminar a celebração na Rua Um, foi abordado por um rapaz armado, que lhe pediu que esperasse um pouco para descer, pois os “alemães” (Policiais do Bope), estavam subindo. Enquanto o espaço em frente à igreja se enchia de homens fortemente armados, ele e duas senhoras tentavam desesperadamente fechar o cadeado da igreja. Depois de mais de uma hora refugiado na casa de uma moradora, o mesmo rapaz foi gentilmente avisar ao frei que podia descer.

Algumas capelas localizadas em locais mais críticos, além da dificuldade de se manter as celebrações com regularidade, estão perdendo moradores no entorno. Isso é um fenômeno geral na Rocinha. Quem morava de aluguel nesses lugares, mudou-se. Quem é proprietário, se tem condições, também vai embora. E as casas ficam vazias, vulneráveis a uma invasão. Nos tiroteios, as caixas d’água e os canos se rompem, os envolvidos atiram nos transformadores para cortar a energia elétrica, e a população fica dias e semanas sem água e sem luz, sem internet, sem geladeira, sem televisão.

As empresas responsáveis pela manutenção não se arriscam a entrar nos becos. Por causa dessa situação, perdemos várias importantes lideranças, que foram embora da Rocinha. O local onde está situada a capela São Francisco está sendo chamado de “Faixa de Gaza”, por causa dos constantes confrontos, e pela destruição e abandono. O pior é que não podemos fazer a manutenção dessas capelas, consertar vidraças atingidas por tiros, restabelecer a energia elétrica, a água, pois nenhum pedreiro se atreve a trabalhar nestes lugares.

Na Igreja Matriz conseguimos manter as celebrações. Padre Luís Corrêa, jesuíta, professor da PUC, é uma ajuda valiosa nos domingos. Contamos também com o auxílio de dois estudantes que vêm de Petrópolis no sábado à tarde e domingo de manhã, Frei Cristiano e Frei André, ambos da Província das Sete Alegrias, do Mato Grosso. Quando tem tiroteio, durante a semana ou nos finais de semana, as missas ficam vazias.

Quando o tiroteio é muito intenso durante a celebração, fechamos as portas e os portões (o que não resolve muito). O mais triste é que, quando há um movimento maior nas missas, é porque temos alguma celebração de sétimo dia por alguma vítima dos confrontos. Os familiares vêm todos com uma camiseta com uma foto do falecido, geralmente jovem e negro. Depois algumas famílias ainda fazem uma foto, todos juntos, nas escadarias da igreja.

Conseguimos, entre apreensivos e esperançosos, realizar todas as celebrações da Semana Santa, com grande participação dos fiéis. Na quinta-feira Santa, dez minutos antes de iniciar a missa do Lava-Pés, houve um intenso tiroteio na Vila Verde. Vários fiéis chegaram assustados, relatando o risco que correram de ser atingidos por uma bala perdida. Logo chegou a notícia da morte de um trabalhador, que estava na varanda de sua casa com seu filhinho de seis meses no colo. Foi atingido no coração, enquanto a criança caía de costas no chão. Fomos visitar a família, a mãe, a esposa e os três irmãos, e levar um pouco de alento e consolo para tanta dor.

A situação que estamos vivendo afetou também os projetos sociais que funcionavam na Paróquia. O Projeto Fibra, que mantinha, em parceria com a paróquia, aula de reforço todos as tardes para cerca de 60 adolescentes, fechou as portas em novembro. Os professores não vinham, com medo, e os alunos também não.

Projeto Afim, que funcionava todos os sábados dando cursos de promoção humana para mulheres de baixa renda, também deixou de funcionar, por medo dos tiros. As visitas que o Grupo de Jovens fazia às famílias mais pobres da comunidade, também teve que cessar. Nem é preciso dizer que as arrecadações também caíram muito, como as coletas, o bazar, a cantina.

Aliás, a questão da queda de arrecadação afetou todos os setores da Rocinha, como um efeito cascata. Aqueles que viviam de aluguéis, estão com as casas vazias. Turistas não aparecem, o comércio, em geral, também está bem fraco. Vários comerciantes que pagavam pelo estacionamento da paróquia, tiraram seus carros. Programamos alguns eventos para arrecadar alguma coisa, mas sempre na incerteza de conseguirmos realiza-los. Se houver tiroteio, pode ser um fracasso.

No momento estamos vivendo numa incógnita. Ninguém sabe o que poderá acontecer nos próximos dias ou horas. Sexta-feira passada, dia 6, foi noticiada uma tentativa de invasão no Vidigal, que teria a ver com a Rocinha. Depois de um escarcéu, com intenso tiroteio, fechamento da Avenida Niemeyer, etc., não se falou mais nada. Já faz uns cinco dias que houve uma trégua nos confrontos. Mesmo assim, os boatos aumentam a apreensão e alimentam a tensão. Os fogos, que avisam a chegada dos policiais, continuam. O Bope e a Tropa de Choque estão todos os dias a postos na entrada da Comunidade. Fica-se sempre na espreita de um confronto iminente.

Como paróquia, fazemos o possível para manter o astral dos fiéis em alta. Muita coisa não pode ser feita, e temos que cuidar muito com o que falamos (e com quem). Só para se ter uma ideia dos riscos, durante um mutirão de confissões numa paróquia na Vila Kenedy, na Semana Santa, onde estava acontecendo a Intervenção Militar, um grupo armado entrou na igreja e roubou todos os fiéis e os padres. Dizem que foi uma retaliação ao pároco. Apesar de tudo, há muita esperança e coragem. E sobretudo, muita fé.

Eu e Frei Douglas estamos muito bem, graças a Deus. Cuidamos de nossa saúde, e nenhum dos dois tem vocação para herói ou mártir. Com cuidado e prudência, não deixamos de atender onde somos chamados, principalmente os doentes, as bênçãos e visitas de casas. Mas o próprio povo cuida muito bem de nós, nos avisando quando podemos ir ou não. Claro que imprevistos existem. Trabalho não falta, e, franciscanamente, fazemos tudo o que é possível, com muito carinho e respeito pelo povo da Rocinha, que é muito bom, fraterno, e bem franciscano. Entre um tiroteio e outro, as atividades acontecem e a vida segue em frente.

Neste fim de semana, entre 13 e 15 de abril, enviamos 24 jovens para a Caminhada Franciscana em Campos do Jordão. Também estamos nos preparando para celebrar os 80 anos da primeira Missa na Igreja, construída pelos franciscanos, inaugurada dia 1º de maio de 1938. O cardeal Dom Orani estará conosco. Pediu pessoalmente que mudássemos o horário por que fazia questão de presidir a celebração. Aliás, ele tem sido uma presença fraterna, sempre telefonando quando a situação fica mais tensa, mandando mensagens de apoio. Vamos disponibilizar nos próximos dias o convite a toda a Província. Esperamos que os confrades apareçam, principalmente aqueles que já trabalharam por aqui. Por enquanto é só. Paz e Bem!

Fonte: IHU