Em carta confidencial, relatores da ONU criticam propostas ambientais do Congresso brasileiro

Relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) afirmam estar “preocupados” com projetos de lei em tramitação no Brasil e que estabeleceriam um novo modelo de licenciamento ambiental. Em uma carta de 30 de maio enviada ao governo federal brasileiro, os relatores das Nações Unidas, John Knox, Michel Forst e Victoria Lucia Tauli-Corpuz, fazem duras críticas às propostas e pedem esclarecimentos sobre o impacto que tais projetos teriam para o meio ambiente e povos indígenas.

A reportagem é do jornal O Estado de S.Paulo e reproduzido por Amazônia e IHU on Line.

Na ONU, porém, não há qualquer registro de que o Brasil tenha dado uma resposta à carta e nem aos pedidos de informação solicitados expressamente pela entidade.

A legislação proposta, segundo os relatores, eliminaria a necessidade de licenças ambientais para projetos envolvendo a agroindústria e pecuária. “Ela reduziria de forma substancial as proteções em vigor para povos indígenas, pessoas de descendência africana e o meio ambiente”, alerta a carta.

Para os relatores da ONU, as flexibilidades previstas para o uso de uma terra transformariam o licenciamento ambiental em uma “exceção” no Brasil, e não numa regra. “Os projetos de lei dão amplas exceções ambientais para atividades agrícolas, pecuária e madeireiras, independente do tamanho, do potencial de degradação, local, necessidade, uso de pesticida e impacto em recursos hídricos”, destacou.

Segundo os relatores, um total de oito atividades estariam isentas de licenciamento, “apesar de seu caráter potencialmente negativo”. “Isso minaria o licenciamento ambiental, o tornando uma exceção, e não a regra”, constatam.

A carta destaca que, por excluir critérios de relevância ambiental, projetos de exploração poderiam ser autorizados para áreas de fronteira com terras indígenas ou áreas de conservação.

“Preocupação também foi expressada diante da redução da proteção ambiental que os projetos de lei teriam sobre os povos indígenas e quilombolas”, alertaram os relatores. Segundo eles, as isenções de licenças ambientais ocorreram até mesmo se houvesse uma presença de um grupo indígena ou de áreas de proteção nas zonas sob debate.

Na carta, os relatores relembram as autoridades brasileiras de seus compromissos internacionais adotados para proteger o meio ambiente e povos indígenas, além de ressaltar que violar tal postura também seria ir contra a Constituição brasileira.

No final de agosto, outra carta – desta vez elaborada pela Comissão Europeia – criticava a situação de violência contra ativistas ambientais no Brasil.

Procurado, o Ministério do Meio Ambiente informou que não comentaria.

 

SOBRE O MODELO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL

O presidente Michel Temer sancionou no dia 11 de julho a Medida Provisória – MP 759/2016, também conhecida como MP da Grilagem. Conforme o site do Senado, ela “dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal”. Ambientalistas apresentam leitura distinta e temem pelos desdobramentos dessa MP. O coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, Márcio Astrini, é taxativo: “Sua aprovação foi uma vitória de bancadas como a ruralista”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Astrini conta que grande parte da MP foi redigida por grupos de interesse instalados no próprio Congresso. “Esses personagens há muito tempo querem ver aprovados retrocessos como os contidos na 759, porém muitas de suas propostas sempre tiveram bastante dificuldade para serem aprovadas, porque são débeis em apoio popular, em justiça social e mesmo por afrontarem a Constituição”, rememora. “A diferença é que agora seus autores encontraram um presidente servil a seus propósitos.”

Ao justificar a medida, ministros do governo disseram que ela servia para legalizar as terras de pessoas que chegaram há décadas à Amazônia a partir de ações do Estado, sem nunca ter recebido o título da terra que foi prometido. Astrini, no entanto, afirma que a MP atende a desejos antigos dos ruralistas, entre eles “acabar com a função social da terra, enfraquecer a luta pela reforma agrária e, principalmente, viabilizar uma grande quantidade de terras públicas para o mercado fundiário”.

O ambientalista conta que o texto foi redigido “no escondido dos gabinetes palacianos” para atender aos interesses de grileiros de terras, donos de grandes condomínios irregulares e máfias do desmatamento da Amazônia, e critica: “O Palácio do Planalto transformou-se numa espécie de subsede da bancada ruralista”.


Márcio Astrini | Foto: Assembleia Legislativa de São Paulo

Márcio Astrini é coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que, na sua avaliação, o Senado aprovou a Medida Provisória 759? Quais partidos votaram a favor dessa medida e quais são os interesses envolvidos nessa decisão?

Márcio Astrini – Grande parte da MP 759 foi redigida por grupos de interesse instalados no próprio Congresso. Sua aprovação foi uma vitória de bancadas como a ruralista. Esses personagens há muito tempo querem ver aprovados retrocessos como os contidos na 759, porém muitas de suas propostas sempre tiveram bastante dificuldade para serem aprovadas, porque são débeis em apoio popular, em justiça social e mesmo por afrontarem a Constituição. A diferença é que agora seus autores encontraram um presidente servil a seus propósitos.

A aprovação e a própria existência da MP 759 explicam-se na crise política atual. Hoje temos um presidente cuja maior preocupação é encerrar o dia ainda no cargo. Para se manter, precisa do Congresso, depende dos votos de um Parlamento dominado pela bancada ruralista. Foi assim que nasceu esta MP, do mais baixo toma-lá-dá-cá político. Os ruralistas garantem a manutenção de Temer, e este os presenteia com a edição de medidas provisórias de seus interesses, entre outras benesses.

O conteúdo da MP tem desejos antigos do setor, como acabar com a função social da terra, enfraquecer a luta pela reforma agrária e, principalmente, viabilizar uma grande quantidade de terras públicas para o mercado fundiário. Estes pontos não surgiram a partir de consultas às populações que seriam afetadas pelo seu conteúdo. Entes como a Defensoria Pública e especialistas da área também não participaram da sua montagem. A MP foi redigida no escondido dos gabinetes palacianos. Hoje, o Palácio do Planalto transformou-se numa espécie de subsede da bancada ruralista.

Infelizmente esta MP não é a única na lista de trocas de favores. Aguardam ainda na fila o enfraquecimento das regras de licenciamento ambiental, a eliminação ou diminuição de unidades de conservação e o ataque aos direitos indígenas e seus territórios. Projetos que beneficiam a concentração fundiária e a grilagem de terras têm lugar de destaque nos interesses ruralistas. De forma geral, eles patrocinam o avanço sobre estoques de terras públicas e de alto valor de conservação para que depois possam ser disponibilizadas ao mercado fundiário, a ser turbinado por um projeto já anunciado pela Casa Civil que prevê a liberação da venda de terras para estrangeiros.

O plano é entregar o patrimônio dos brasileiros não apenas aos grileiros nacionais, mas também aos investidores internacionais de terras

O plano é entregar o patrimônio dos brasileiros não apenas aos grileiros nacionais, mas também aos investidores internacionais de terras, o que colocaria em risco não apenas nossa soberania alimentar, mas também territorial.

IHU On-Line – Quem será beneficiado com a MP 759?

Márcio Astrini – Ela foi escrita para atender aos interesses dos grileiros de terras, dos donos de grandes condomínios irregulares e das máfias do desmatamento da Amazônia.

No discurso, ministros do governo disseram que ela servia para legalizar as terras daqueles que há décadas chegaram à Amazônia trazidos pela mão do Estado, mas que nunca receberam o título da terra que lhes fora prometido. Seria justo. Mas o objetivo por trás da MP é outro, em uma estratégia que já foi usada em diversas outras oportunidades. Eles usam a imagem daqueles que realmente têm direitos a serem reconhecidos em lei, daqueles socialmente mais vulneráveis e que necessitam da ajuda do Estado, para entregar facilidades a quem apostou na impunidade e no crime. Usam a justiça dos que merecem para presentear quem apostou na ilegalidade de forma deliberada. Apresentam a lei sob a foto do agricultor familiar, mas guardam em seu conteúdo a anistia aos grandes proprietários de terra.

Um exemplo claro disto é que, no ato que marcou a sanção da MP, o discurso se referia a legalizar terras de quem chegou à região da Amazônia nos anos 70 e 80, mas a verdade é outra. Primeiro, porque a legislação atual já prevê a possibilidade desta titulação para quem ocupou propriedades até o ano de 2004, portanto, não haveria necessidade de outra lei. O que ocorre mesmo é que a MP estende o prazo dessa legalização do ano de 2004 para 2011, uma espécie de anistia, e ainda aumenta o tamanho das propriedades a serem beneficiadas, passando de 1.500 para até 2.500 hectares. Portanto, não estamos falando de quem ocupou de boa-fé a região décadas atrás, e nem mesmo de pequenos agricultores ou de propriedades familiares, mas sim de quem, há 11 anos, vem ocupando grandes áreas públicas, mesmo sabendo que era ilegal. Esses apostaram na impunidade, e agora a receberam do governo.

Curioso também é a presença do ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, no ato de sanção da MP. Logo ele, que é sócio de fazendas no Mato Grosso e está na mira do Ministério Público de lá, que o acusa de desmatamento ilegal e invasão a uma unidade de conservação do estado. Um bom exemplo de interesse neste tipo de mudança da lei.

IHU On-Line – Que legislações serão alteradas por conta da MP 759 e, de modo geral, o que muda em relação à regularização fundiária urbana e rural com a aprovação da medida?

Márcio Astrini – As alterações são diversas e abrangem tanto a regularização fundiária no campo quanto nas cidades. Nesta última, facilita em muito a vida das ocupações irregulares de alto padrão, anistiando o mercado imobiliário e especuladores urbanos. O programa Terra Legal, com as mudanças de prazos e com a elevação do tamanho das propriedades a serem beneficiadas, é outra alteração, além de estender essa legislação, que antes se limitava apenas à Amazônia, para todo o país.

A MP também altera a lei que incide sobre as regras para a reforma agrária, em um claro movimento de enfraquecimento dos movimentos sociais que atuam no campo.

A alteração nas regras para a aquisição de terras públicas para grandes lotes, possibilitando que estes sejam titulados mediante pagamentos com a incidência de descontos generosos a quem realizou tais ocupações, é de extrema preocupação. Institui-se um procedimento onde é mais barato invadir terra pública, esperar pela anistia e pagar valores irrisórios por elas do que se submeter a rito legal. É um incentivo ao crime, um incentivo moral e financeiro. Um parecer do TCU de 2014 já indicava que tal prática é contrária à legislação em vigor, fato que parece não causar grandes constrangimentos no governo.

As implicações desta MP para o conceito de uso social da terra são enormes e negativas

É importante dizer que este dispositivo tem como público-alvo prioritariamente as grandes propriedades, aquelas na nova faixa que a lei permite, entre 1.500 e 2.500 hectares. Assim, o que o governo está fazendo na prática é vender terra pública, patrimônio de todos os brasileiros, por valores irrisórios, sem contrapartida, sem nenhum quesito social.

IHU On-Line – Muitos especialistas afirmam que a MP 759 acabará com o conceito de uso social da terra. Quais as implicações da MP nesse aspecto?

Márcio Astrini – O conceito de função social da terra está intimamente ligado às ações de regularização fundiária e de destinação de terras, principalmente as públicas. Assim, as implicações desta MP para o conceito de uso social da terra são enormes e negativas.

Ela retira das mãos do Estado ativos fundiários que deveriam ser destinados ao uso social e escancara um mundo de possibilidades para que esses ativos sejam privatizados, ou ainda para que passem para as mãos de quem se apropriou dessas terras de forma criminosa e em grandes proporções. A MP promove a liquidação de terras públicas a qualquer custo.

A MP ainda enfraquece os mecanismos de reforma agrária e das organizações sociais que nela atuam. Um exemplo é o dispositivo que autoriza que municípios passem a organizar a destinação de terras para assentamentos, deixando esse mecanismo muito mais suscetível às pressões políticas locais e ao uso de outros objetivos que não o atendimento das famílias que de fato deveriam ser assistidas por esta política.

De forma geral, a MP 759 reforça o conceito de competitividade e ocupação econômica de áreas públicas sem justificativa social. Todo o seu conteúdo é um ataque ao conceito de uso social da terra.

IHU On-Line – Por que a aprovação da MP 759 favorece a especulação do mercado de terras e a venda de terras a estrangeiros?

Márcio Astrini – A MP oferta uma quantidade enorme de terras públicas ao mercado de especulação fundiária. Eram áreas antes de posse do Estado que agora serão oficialmente tituladas e passíveis de serem negociadas.

Alguns estudos dão conta de que, em menos de dois anos, o governo Temer poderia emitir cerca de quatro vezes mais títulos da reforma agrária do que todos os títulos emitidos nos governos Lula e Fernando Henrique juntos. Esses números ainda são preliminares, há quem aposte que serão ainda maiores. O fato é que esses títulos estariam disponíveis para uso no mercado fundiário, ofertando assim um grande contingente de terras ao mercado. Um ponto crucial nisto tudo é que este movimento ocorre no mesmo momento em que vivemos uma grande crise econômica e quando o governo promove corte nos já mínimos investimentos em políticas de assistência aos pequenos agricultores e à agricultura familiar. A PEC do teto de gastos [Proposta de Emenda à Constituição Nº 55, que limita por 20 anos os gastos públicos] é um exemplo mais vivo disto. Combinados, tais fatores são um impulso extra para o aumento da oferta de terras.

Muitos fundos de pensão e grupos de investimentos internacionais têm como alvo arrebatar terras baratas em países em desenvolvimento como o Brasil. Recentemente, grandes investimentos neste sentido foram realizados em países do continente africano. A MP 759, associada à já anunciada pretensão do governo federal em liberar a venda de terras do país para estrangeiros, seria o passo final para a atração deste mercado internacional.

IHU On-Line – Quais são as implicações da MP 759 para a área da Amazônia Legal?

Márcio Astrini – Na Amazônia, a violência, o desmatamento, a grilagem de terras e a omissão do Estado são irmãs, caminham juntas e muitas vezes ocorrem no mesmo espaço, tornando vítimas não apenas a floresta, mas principalmente as pessoas que lá habitam, principalmente as mais pobres. Na base de todos esses problemas está a disputa pela terra. A ação de grupos organizados que se aproveitam das brechas da lei para assaltarem as terras públicas é algo frequente. E o que a MP faz neste cenário? Ela reforça exatamente a ação daqueles que promovem esta situação.

A MP é um recado claro vindo de Brasília de que o crime compensa

A MP é um recado claro vindo de Brasília de que o crime compensa. Quem pratica a ilegalidade de forma deliberada olha para esta medida provisória e pensa: “Se houve anistia ao crime vinda do próprio presidente, se esta anistia foi prorrogada em 11 anos, se a área a ser anistiada foi aumentada, por que devo parar de grilar terras agora? Por que não apostar em uma nova anistia, em uma nova mudança de prazos e de tamanho de propriedade?”.

A MP não trouxe nenhum benefício a quem cumpriu a lei. Ao contrário, ela beneficiou quem não a cumpriu. Este é o exemplo que foi passado. Esta MP irá impulsionar o desmatamento, a grilagem e a disputa violenta por terras na Amazônia.

 

FONTE: IHU on line