[ENTREVISTA: Jacqueline Sinhoretto]: “PM teve comportamento miliciano em Paraisópolis”

Em 04/12/2019, via blog do Diogo Schelp, no UOL –

Por Diogo Schelp

“É mesmo necessário tocar o terror em uma comunidade e matar nove pessoas para perseguir um suspeito?”, questiona Jacqueline Sinhoretto, uma das maiores especialistas do Brasil em violência policial, a respeito da operação da PM que resultou na morte de jovens de 14 a 23 anos em uma festa de rua na favela de Paraisópolis, no último fim de semana. 

Paraisópolis
Maria Cristinha, durante o sepultamento de seu filho Denys Henrique Quirino da Silva, 16, no cemitério da Nova Cochoeirinha, na zona norte da capital. O garoto foi morto após operação policial em baile funk na comunidade de Paraisópolis
(Foto: Danilo Verpa/Folhapress)…

Professora de sociologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Jacqueline Sinhoretto é coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Violência e Administração de Conflitos da mesma universidade. Na entrevista a seguir, ela analisa a operação com desfecho trágico na favela e explica que a violência policial ocorre por uma decisão política, não falta de preparo dos PMs.

Como você avalia o episódio que levou à morte de nove adolescentes e jovens na favela de Paraisópolis?

O quadro geral, com o que se sabe até agora, revela uma situação deliberada, criminosa e inaceitável sob qualquer ponto de vista, seja legal, ético ou profissional. Não se faz policiamento dessa maneira. O que ocorreu ali é barbárie, é imposição de poder, é vingança. É comportamento miliciano, não é comportamento de uma polícia preparada e cara como é a PM do estado de São Paulo.

Mesmo se for verdadeira a versão dos policiais, de que entraram no meio da multidão para perseguir dois bandidos em uma moto?

O que está em jogo em uma perseguição? É mesmo necessário tocar o terror em uma comunidade e matar nove pessoas para perseguir um suspeito? O que pode ser mais importante do que a vida e a segurança de milhares de pessoas reunidas em uma festa? 

Esse argumento da perseguição é uma bobagem sem tamanho. A polícia francesa, por exemplo, não faz perseguições, dessas de filme americano, que sai com carro correndo atrás. Ela parte da certeza de que não tem como alguém fugir do estado francês para sempre. As forças policiais têm milhares de formas de seguir uma com câmeras, com imagens, com dados, com informação. A PM de São Paulo também tem condições técnicas de abordar o crime de outra maneira.

O que explica a postura dos policiais no episódio de Paraisópolis?

 Todos os dias, na cidade de São Paulo, a polícia mata uma pessoa. Os policiais matam sob a justificativa de que para defender a vida eles têm que destruir a vida. Isso faz parte da cultura organizacional da PM, que encontra respaldo de uma parcela da população que espera que a polícia seja violenta.

Existe outra parcela da população, porém, que diz exatamente o contrário, que a polícia não pode matar e que denuncia o caráter seletivo da violência policial, que consiste em colocar uma parcela da população sob um forma de controle baseada no terror, no medo, na imposição da morte violenta. Há quem chame isso de genocídios; outros, de necropolítica.

A parcela da população que se opõe a uma polícia violenta não é ouvida. Na hora de fazer as políticas e decidir se os policiais devem ser punidos ou não, escolhe-se o apoio da parcela da população que espera a violência.

Nesse ponto, a ação da polícia não é técnica nem neutra, pois está selecionando o tipo de visão de sociedade ao qual ela quer se ligar. Existem estudos técnicos científicos mostrando que a violência policial não reduz crime, mas são negligenciados pelos formuladores das políticas públicas de segurança. Portanto, há uma escolha ideológica do tipo de apoio que a polícia procura nos grupos sociais.

Esse mesmo apoio de uma parte da sociedade justifica que uma ação como essa ocorra em uma favela, mas não em um bairro de classe média alta? 

O baile funk não é nada diferente de outras manifestações culturais que ocorrem pela cidade, a não ser pelo fato de que está dentro de uma favela. Ele não é rechaçado por ser uma festa desorganizada, espontânea. O que baseia o apoio social a uma ação policial completamente irracional e criminosa como essa é o racismo. É o fato de que aquela população é vista como indesejável, como uma população “matável”.

Manifestações em espaço de rua são parte da vida da cidade. Na academia de polícia há uma disciplina que discute controle de manifestações e de aglomerações humanas. A PM tem programas para melhorar sua atuação nesse tipo de situação. Não há justificativa técnica para o que aconteceu.

Qual é o perfil das vítimas de abuso policial no Brasil?

As principais vítimas de abuso policial no Brasil têm exatamente o perfil dos jovens que morreram em Paraisópolis. Fizemos, na universidade, levantamentos de casos entre 2008 e 2012, e depois de 2014. Agora, estou pesquisando dados de 2008 a 2018. Claramente, as vítimas de letalidade policial (que é o caso mais extremo da violência policial, pois resulta em morte) têm entre 16 e 24 anos. Ou seja, para esses jovens, a ação letal do estado chega antes de qualquer outra política de segurança pública.

Além de jovens, 90% dos brasileiros mortos por policiais são homens e 70% ou mais, a depender do ano, são negros. Nos anos em que a violência policial cresce muito, a proporção de negros aumenta mais. Já nos anos em que a violência policial cai, verifica-se que a disparidade estatística entre vítimas brancas e negras diminui um pouco.

Como acontece essa letalidade?

Há os casos com vários mortos em uma mesma ocorrência, em geral em ações de agrupamentos especializados, como a Rota. Nessas ações policiais, o resultado “morte” não é visto como algo a ser evitado. Houve até um episódio em que o ex-governador Geraldo Alckmin elogiou a atuação da polícia que resultou em vários mortos, dizendo que “quem não reagiu está vivo”.

O resultado “morte” faz parte do planejamento dessas ações e é encorajado pelas autoridades políticas. E existe a letalidade de varejo, em geral ocorrências que envolvem uma viatura e uma pessoa. Segundo um trabalho da pesquisadora Samira Bueno, que consultou boletins de ocorrência, a maior parte desses casos de letalidade policial resultam de ocorrências de roubo. Ou seja, para a polícia, a defesa do patrimônio é mais importante do que a defesa da vida.

Essa crítica vale mesmo quando os bandidos reagem à polícia?

Há dois fatores a serem considerados. O primeiro é que o potencial armado da PM de São Paulo é maior do que qualquer quadrilha do estado. Essa afirmação talvez não seja verdade para o Rio de Janeiro, mas para São Paulo, é. Não existe território em que a policia paulista não tenha supremacia militar, em termos de armas, estratégias ou outras tecnologias auxiliares de policiamento. Nunca ouvi um policial dizendo que não tem.

Em segundo lugar, essas ações podem ser planejadas de maneira a evitar as mortes de policiais. Se a polícia está sendo recebida a tiros por pessoas com potencial militar menor, isso significa que há algo de errado no planejamento dessas ações. A superioridade policial é demonstrada pelo número de policiais mortos em comparação com a letalidade policial.

Pela análise feita por nós, a polícia mata 64 vezes mais do que morre. Ou seja, para cada policial morto, a polícia matou 64 pessoas

Tem que matar para não morrer? Esse argumento não é razoável. Se fosse assim, haveria um equilíbrio nas estatísticas.

A violência policial tende a piorar com a proposta de excludente de ilicitude do governo federal, que reduziria ou mesmo isentaria de pena policiais que matam em serviço?

Na verdade, poucos policiais são investigados ou punidos por ações dessa natureza. A polícia sempre diz que expulsa muitos policiais que cometem erros, mas dificilmente por causa de letalidade.

A pesquisa da Samira Bueno também mostrou isso. Ela entrevistou policiais que estão presos por homicídio e descobriu que nenhum é por letalidade policial. Em geral eles foram condenados por feminicído, por exemplo, ou outras ocorrências que nada têm a ver com a atividade de polícia. Ou seja, eles não estavam em serviço.

O excludente de ilicitude, portanto, já existe na prática. E isso é denunciado por diversos movimentos sociais, que não são ouvidos pela cúpula da PM e ou pelos  governadores.

Por quê?

Na gestão do governador Mario Covas, alguns secretários tentaram fazer algo a respeito, mas foram ações pontuais. Os governadores não se comprometem com a redução da letalidade policial. É uma decisão política.

Não é que faltem opções de policiamento. Trata-se de uma escolha, mesmo. Os governadores buscam apoio da parcela da população que espera que a polícia mate. 

Se os policiais não conseguem trabalhar de uma forma que não tenha o resultado “morte”, isso não tem a ver com deficiência de armamento ou de tecnologia da PM. Isso tem que a ver com uma intenção no resultado “morte”.

Isso estava expresso de maneira explícita no discurso de campanha do governador João Doria, que disse que em sua gestão a polícia militar ia atirar para matar. Pois bem, o programa de governo dele está sendo colocado em prática.

Quais são os mecanismos existentes para coibir a violência policial?

O Conselho Nacional de Justiça criou as audiências de custódia com dois objetivos: reduzir o encarceramento excessivo e desnecessário, principalmente o de presos provisórios, e controlar a violência policial no momento da prisão.

Todos os juízes têm que perguntar na audiência sobre esse elemento. Mas as pesquisas que foram feitas em São Paulo, inclusive uma da qual eu participei, deixaram claro que as audiências de custódia não priorizam o controle da violência policial.

Nós observamos que, no Fórum de São Paulo, costuma haver uma presença massiva de policiais militares dentro da sala de audiência, o que inibe as pessoas de fazerem um relato do que ocorreu. Mesmo assim, na nossa amostra, percebemos que 22% das pessoas falaram sobre brutalidade policial.

Uma parte dos operadores jurídicos, porém, tem uma indisposição para ouvir esse tipo de queixa. Além disso, não existem procedimentos claros sobre quem deve apurar essas ocorrências, que acabam sendo encaminhadas para a própria corregedoria da PM. E os casos nunca são apurados.

E quanto à atuação da Ouvidoria da Polícia?

Trata-se de um órgão independente, mas que está vinculado ao orçamento da Secretaria de Segurança Pública. Além de não ter independência financeira, tampouco tem autonomia de investigação. A ouvidoria monitora esses casos, peticiona, cobra, faz um trabalho de auditoria externa, mas não tem poder de requisitar os policiais para colher seu depoimento.

Continua cabendo às corregedorias fazer a investigação dos seus próprios integrantes, só que esse é um procedimento corporativo que tende institucionalmente ao fracasso. Não porque os policiais sejam bons ou ruins ou porque quem trabalha na corregedoria seja bom ou ruim, mas porque é um modelo institucional que favorece o corporativismo.

Os moradores de Paraisópolis relataram que a atuação da PM na favela tornou-se mais agressiva depois que, recentemente, um policial foi morto por um bandido local. Aventou-se até a hipótese de que a ação no baile foi uma retaliação. Como fica a confiança da população na polícia em situações como essa?

Se isso for verdade, a polícia está se comportando como uma milícia, como um bando armado. Um policial foi morto? A lei foi quebrada e o papel do estado é investigar, encontrar o culpado e processá-lo pelas vias legais. Há uma desestabilização total da ordem de normalidade de uma sociedade quando uma organização armada do estado age por vingança privada.

Quando a polícia cruza essa linha, torna-se um bando criminoso e deixa de cumprir sua função constitucional. Isso só agrava a baixa confiança da população na polícia.

Segundo uma pesquisa de opinião, mais da metade dos moradores de São Paulo entrevistados diz que tem mais medo do que confiança na polícia. Se separar por faixas etárias, local de residência na cidade e grupos de cor e raça, descobre-se que os jovens, os negros e a população de periferia tem ainda mais medo do que confiança na polícia.

No relato de experiência que eu tenho feito na minha pesquisa, os negros moradores da periferia não confiam no trabalho da polícia, consideram-na violenta e têm a percepção de que ela não trabalha pelos interesses segurança pública da população à qual pertencem.

Esse grupo populacional também tem um alto grau de adesão à ideia de que a polícia militar tem que desaparecer e deixar de existir como instituição. Ou seja, há uma convicção de que é impossível reformar a polícia militar.

Qual é a postura que se espera das autoridades a partir de agora?

 Não dá para compactuar com o que ocorreu. Foi cometido um crime gravíssimo, uma grave violação dos direitos humanos. O estado tem que se responsabilizar por isso. Tem que haver procedimento de perícia para casos de graves violações de direitos humanos, com observação internacional.

A PM de São Paulo não pode acobertar um crime dessa natureza. Os casos de exacerbação de violência policial aparecem a cada dois ou três anos, com episódios como o do Carandiru e o massacre da Favela Naval. Em cada ciclo, os episódios não surtem o resultado de fazer a PM questionar o próprio papel.

A cultura da corporação precisa ser revista. Qual é o interesse que a sociedade tem em ações como essas? Qual é o bem que se quer defender? Esse bem deveria ser a vida.

Fonte: UOL