“Não há precedentes para a crise econômica causada pelo coronavírus na história recente”, diz economista Monica de Bolle

Em 16/03/2020, por Agência Pública –

Em entrevista à Pública, pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics (PIIE) defende a revisão do teto de gastos e critica discurso da equipe econômica do governo Bolsonaro.

O avanço da pandemia causada pelo coronavírus trouxe consigo uma crise econômica de escala global. As principais bolsas de valores do mundo acumulam quedas superiores a 20% desde o início do ano. Dados divulgados pela Conferência da ONU para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad) apontam uma possível perda de US$ 2 trilhões para a economia global devido à paralisia econômica causada pelo vírus.

“Não temos precedentes para isso na história das crises recentes. Não temos como comparar isso que está acontecendo com o cenário, por exemplo, de 2008. São crises de natureza muito diferentes. Em 2008, foi uma crise de natureza financeira. Uma crise causada por uma epidemia, ou seja, quando você junta uma crise econômica com uma crise de saúde é algo inédito”, afirma a economista Monica de Bolle, pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics (PIIE).

Leo Aversa/Divulgação
Monica de Bolle é economista e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Diante deste cenário, ela defende a adoção de estímulos econômicos de curto prazo, como investimentos públicos em infraestrutura por meio do BNDES, para que o país possa suportar uma crise econômica que se avizinha. Em entrevista à Agência Pública, ela criticou a postura adotada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, de somente defender as reformas como a solução para atravessar a crise e se disse à favor de uma revisão do teto de gastos aprovado no governo Temer.

O cenário macroeconômico externo se agravou muito com o avanço do coronavírus e a queda acentuada nos preços do petróleo. Esse cenário veio de encontro a uma economia que ainda patina, que demonstrou um crescimento do PIB abaixo do previsto, o que indica uma recuperação lenta da atividade econômica. O governo vem adotando uma postura de simplesmente insistir na aprovação das reformas. Você tem se manifestado de maneira contrária a isso. Por que você considera essa estratégia pouco efetiva?

Que estímulos de curto prazo seriam necessários?

Eu não sou contra as reformas. Várias das que estão sendo colocadas na agenda são bastante importantes para o Brasil e merecem sair do papel. No início do ano, antes das primeiras notícias a respeito da epidemia Covid-19, o Brasil ainda estava passando por um momento de relativa normalidade em relação à economia mundial em que parecia que essa história de fazer reformas de médio e longo prazo era um curso a ser seguido. Mas desde que a gente começou a ter as primeiras notícias da epidemia na China e depois, quando isso se agravou imensamente em fevereiro, o quadro mudou radicalmente.

Embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) não tenha optado por chamar a doença causada por esse vírus de síndrome respiratória aguda, ela está em evolução e ainda não sabemos exatamente o grau de letalidade da doença, a comunidade científica tampouco sabe, mas ela é gravíssima porque é uma doença que ataca os pulmões. Não é só uma gripe. É uma síndrome respiratória: a progressão natural da doença é atacar os pulmões de maneira agressiva. É verdade que os casos de morte têm sido em pessoas idosas e em pessoas em condições debilitadas de saúde.

Os países têm capacidades de resposta muito variadas e a doença ainda não chegou com força nos países em desenvolvimento, ela está localizada nos países desenvolvidos e está causando muito estrago. Nós temos um país fechado: a Itália, algo sem precedentes. Há países decretando todo tipo de fechamento de tudo que se pode imaginar, de eventos esportivos a universidades, escolas, até cidades inteiras, a paralisação que isso já está causando e ainda vai causar é enorme, estamos apenas no início da pandemia.

Não temos precedentes para isso na história das crises recentes. Não temos como comparar isso que está acontecendo com o cenário, por exemplo, de 2008. São crises de natureza muito diferentes. Em 2008, foi uma crise de natureza financeira.

Os economistas têm um certo entendimento a respeito das políticas a serem adotadas para conter a crise e para dar sustentação econômica num outro momento. Uma crise causada por uma epidemia, ou seja, quando você junta uma crise econômica com uma crise de saúde é algo inédito. E pela maneira como a doença se manifesta e requer determinados tipos de paralisação, não há uma resposta plausível dos Bancos Centrais que possa destravar essa paralisia. Por exemplo, na crise de 2008, nós tivemos os Bancos Centrais agindo para dar liquidez aos mercados de crédito que estavam travados. Agora, o máximo que os Bancos Centrais vão conseguir fazer é dar um alívio para empresas que estejam sofrendo ou asfixiadas por falta de fluxo de caixa. Mas isso não destrava a economia. Portanto, o que sobra é a política fiscal.

Numa paralisação dessas, você tem paralisação de oferta e paralisação de demanda. A demanda, pelo menos no que diz respeito ao setor privado (consumidores, empresas, investidores, etc.) não vai ser destravada tão cedo, só quando a epidemia acabar, ou quando se achar uma vacina, quando se tiver alguma noção do cenário. O único ente que temos para conter a insuficiência de demanda é o governo. Como? Por meio de estímulos fiscais. Que estímulos fiscais? Varia de país para país.

Em alguns países, pode ser que os governos decidam fazer estímulos concentrados nos setores mais afetados pela paralisia. Por exemplo, setor de entretenimento, turismo, serviços atrelados ao setor de turismo (restaurantes e etc.). Em outros mais, a resposta fiscal pode ser mais abrangente. O Reino Unido anunciou um pacote fiscal de 30 bilhões de libras. Aqui nos Estados Unidos, já houve uma medida de estímulo fiscal feita pelo Trump de redução de impostos, acho que vai ser insuficiente e que, no fim das contas, o governo vai ter que fazer algum tipo de pacote de gastos.

E a situação brasileira?

O Brasil não é exceção. Aliás, o Brasil deveria estar muito mais preocupado que os outros países, sendo que o Brasil ainda tem tempo de se preparar para isso. O Brasil tem uma janela para reaver as prioridades de política econômica que, neste momento, têm que ser: deixar as reformas de médio prazo de lado por um tempo, não significa abandoná-las, mas elas deixaram de ser prioritárias. Temos que parar pra pensar no que pode ser feito dentro das restrições que o país têm para evitar o pior cenário.

O Brasil está entrando nessa crise vindo de uma economia com todas as fragilidades que você mencionou, um crescimento muito baixo, uma taxa de desemprego muito alta e não só isso: há um mercado de trabalho muito fragilizado. Os poucos empregos que estão sendo criados não dão segurança econômica para as pessoas que estão sendo empregadas: ou são empregos informais ou com poucos benefícios, com pouca rede de sustentação econômica. Para além disso, temos uma população vulnerável enorme.

Temos um grau de desigualdade fenomenal. Centenas de milhões de pessoas vão depender do SUS, que é um bom sistema de saúde, mas não tem capacidade de absorver o tipo de dano que essa doença pode causar, haja visto o colapso no norte da Itália, uma região desenvolvida, onde há bons hospitais e o sistema de saúde é público.

O Brasil tem uma vulnerabilidade da população extrema comparado a outros países, um percentual considerável de idosos, muitos dos quais sem amparo nas redes de proteção social. É uma situação de quase tempestade perfeita para que uma doença como essa, sem a devida resposta das autoridades brasileiras, gere uma destruição imensa de vidas, de sistema de saúde e da economia. Não dá para exagerar isso. Eu fico espantada com como as pessoas no Brasil estão cegas para o que está se passando e para o que pode vir pela frente.

Nesse contexto, um governo responsável deveria estar pensando em, dadas as restrições fiscais que o país têm e nós temos, não podemos simplesmente sair gastando, é pensar no que o país pode fazer para dar alguma sustentação na economia e impedir um colapso completo. Esse tem que ser o debate do momento.

O debate não pode mais ser reforma de médio prazo, mas o que a gente vai fazer para enfrentar uma situação absolutamente inédita, que outros países avançados estão tendo dificuldades em enfrentar. Minha proposta é que o país aja na área de investimento público, sobretudo em infraestrutura.

O investimento público no Brasil desabou e é uma área fundamental para movimentar a economia. Na área de infraestrutura em particular, os efeitos multiplicadores são grandes: você movimenta muitos setores como, por exemplo, o da construção civil, que emprega muita gente e gera sustentação no mercado de trabalho, mesmo que temporariamente. Melhor ainda se, na infraestrutura, conseguíssemos discutir uma agenda verde. Esse é o momento de pensar em projetos específicos.

Qual o projeto que podemos desengavetar hoje e tocar? É algum projeto na área de logística? É saneamento básico? O governo teria que sentar e delinear essa estratégia para começar hoje um programa de investimentos públicos para tentar conter a situação que vem por aí. Isso pode exigir que o teto de gastos seja modificado ou até deixado de lado por um tempo dentro do possível? Sim. Sei que não cumprir o teto é crime de responsabilidade, mas estamos falando de uma situação excepcional, o que a maior parte dos economistas do Brasil não conseguem entender.

Assim como em 2008, o Fed [Federal Reserve, o sistema de bancos centrais dos Estados Unidos] americano fez uma porção de coisas que não poderia em tese fazer e só foi procurar aprovação no Congresso depois de feitas, por estar tentando evitar que a crise se alastrasse e virasse algo mais destruidor, o mesmo vale para hoje.

O que nós podemos fazer com o teto de gastos hoje que nos permita colocar em prática essas medidas para sustentar a economia? Essa é a questão fundamental pela qual deveria estar passando o debate econômico no Brasil e onde deveria estar a cabeça das autoridades. Infelizmente, não é o que estamos vendo.

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