Leonardo Avritzer: A crise do bolsonarismo

Em 09/04/2020, de “A terra é redonda”, via Carta Maior e IHU.

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Leonardo Avritzer é cientista político da UFMG

Jair Bolsonaro elegeu-se para a presidência devido a uma coalizão de forças e fatores muito particulares entre os quais cabe destacar dois: o antipetismo e a maneira como ele lidou com as redes sociais. O antipetismo é um fenômeno complexo e que tem diversas definições, mas o que eu gostaria de ressaltar aqui são os diferentes elementos, distribuídos no tempo, que caracterizam esse sentimento e o comportamento político da opinião pública em cada um deles.

antipetismo surge nas eleições de 2006 quando, pela primeira vez desde 1994, o eleitorado brasileiro se divide nas eleições presidenciais em termos de região e renda. Entre a eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, e a eleição de Lula, em 2002, os candidatos eleitos presidentes se elegiam em mais de 90% dos estados e alcançavam a maioria em todos os segmentos econômicos.

Em 2006, começa a divisão, que o mapa abaixo expressa, e que irá se acentuar nos anos posteriores com pequenas variações, colocando parte significativa da população das regiões sul e sudeste contra o PT. A partir daí o mapa abaixo se consolidou e se iniciou um processo de fratura política do país que conduziu ao bolsonarismo e que talvez esteja chegando ao final.

Mapa de votos no 2º turno da eleição presidencial de 2006 (Foto: Instituto da Democracia)

A partir de 2010 acentua-se essa divisão, que já era regional, tornando-se uma divisão de renda. Tal como mostra o gráfico abaixo, a renda média dos eleitores nos candidatos presidências do PT vai ao mesmo tempo sendo reduzida enquanto a proporção das pessoas de baixa renda que vota no PT foi aumentando. Assim, o ponto de corte do eleitorado petista foi decrescendo em termos de renda familiar.

Enquanto, em 2002, o PT ainda tinha 30% dos votos do eleitorado que ganhava entre 3 e 5 salários mínimos e mesmo em 2006 mantinha quase a mesma marca, esse eleitorado o abandona quase que integralmente em 2010 e 2014. Ainda mais acentuado é o abandono do PT pelo eleitorado com renda entre 5 e 10 salários mínimos ou mais de 10 salários mínimos. Assim, o antipetismo tem um elemento regional e um elemento de renda que são centrais, mas nenhum desses elementos por si só conduziria ao bolsonarismo.

Eleitores do PT por renda familiar mensal (Foto: Avritzer, Leonardo. O Pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia, 2019)

É o terceiro elemento do antipetismo que me interessa aqui porque foi ele que conduziu ao bolsonarismo. A partir de 2014, devido à maneira como a operação Lava Jato estabeleceu a seletividade no combate à corrupção mirando membros do Partido dos Trabalhadores e optando, independentemente das provas, por não investigar membros de outros partidos [1], em especial do PSDB, o antipetismo adquiriu uma dimensão moral e antipolítica.

Do lado moral, o que a enorme manipulação midiática da população brasileira gerou foi uma concepção de que havia um campo político corrupto, aquele ocupado pelo PT, e um não corrupto, que envolvia as forças de centro. Na medida em que foram crescendo as evidências contra as forças de centro, em especial contra o PMDB e o PSDB, o campo da virtuosidade ética foi passando para a direita até que se firmou na figura de Jair Bolsonaro.

Mas, o mais importante foi o crescimento de uma dinâmica antipolítica junto com a moralização do antipetismo. De acordo com essa concepção, se a corrupção for retirada da política ou se esta for saneada, o bom governo estará automaticamente garantido. Foi essa concepção que lançou o eleitorado de classe média das regiões sul e sudeste nos braços de Jair Bolsonaro.

concepção de governo, ou de (des)governo, de Jair Bolsonaro tem dois pilares: o primeiro pilar decorre da concepção de antipolítica que se desenvolveu no Brasil e supõe que a não composição política com o Congresso Nacional constitui uma forma de governo. Jair Bolsonaro montou um ministério no qual pouquíssimos ministros tinham relações com partidos. Entre eles cabe destacar Gustavo BebiannoOnyx LorenzoniLuiz Henrique Mandetta e Osmar Terra.

Apenas dois deles sobrevivem ao trator presidencial e à sua estratégia de desvalorizar seus próprios ministros. Onyx Lorenzoni sobrevive com poderes reduzidíssimos e Luiz Henrique Mandetta subitamente enfrenta um pico de exposição em virtude da crise sanitária. É preciso entender o problema que o novo protagonismo adquirido por Mandetta coloca para Bolsonaro. Esse protagonismo não representa apenas uma relativização da figura do presidente. Ele é muito mais, porque representa a reabilitação da ideia de governo baseado na ciência e na organização de políticas públicas, que Bolsonaro procura desconstruir. Na medida em que Mandetta consegue apoios no ministério estabelece-se uma tensão não apenas entre ele e o presidente, mas entre ele e o bolsonarismo enquanto concepção de (des)governo.

O segundo elemento de tensão entre Bolsonaro e a política se estabelece na sua base nas redes sociais. Bolsonaro tem uma ampla base nas redes que é (ou foi) constituída por três grupos principais: um grupo que remete diretamente ao presidente e aos seus filhos e que é mobilizado em uma tática de ratificação acrítica das posições do presidente, isto é, sempre que o presidente se encontra em apuros ou polemizando com a imprensa, ele deslancha uma campanha de defesa das suas visões ou de agressão a pessoas específicas por esse meio que acabou apelidado de “gabinete do ódio”.

O outro elemento de inserção do bolsonarismo nas redes é uma vasta rede de sites e perfis de direita um pouco mais moderada que incluía, no passado, movimentos como o MBL, e o Vem para a Rua, sites como O Antagonista que amplificavam a defesa das posições do presidente para além das redes bolsonaristas estrito senso.

Por último, Bolsonaro era apoiado por um conjunto de pessoas com destaque nas redes sociais: de empresários influentes entre os quais se destacam o dono de lojas como a Havan, a Riachuelo, até um círculo diversificado de artistas e personalidades públicas como Alexandre FrotaCarlos Vereza e Janaina Paschoal, com as quais o bolsonarismo contava até algumas semanas atrás. É nesses dois círculos de apoio nas redes sociais que Bolsonaro vem perdendo apoio nas últimas semanas.

A reação do bolsonarismo ao seu isolamento político foi a radicalização do discurso anti-isolamento social na tentativa de reestabelecer uma orientação antigovernabilidade. Na semana passada, Bolsonaro procedeu a uma reforma ministerial informal. Na reunião entre ele e os seus ministros participou o vereador pelo Rio de Janeiro, o seu filho Carlos Bolsonaro. Ao mesmo tempo, ele elaborou um pronunciamento à nação na qual questionava dados sobre o impacto do coronavírus e, ao mesmo tempo, alardeava informações sobre a cura baseada na hidroxicloroquina.

Mais uma vez, vale a pena lembrar que nada disso é novo. Nos seus 28 anos como deputado federal Bolsonaro apresentou apenas um projeto de lei, o que legalizava a assim chamada pílula do câncer (a fosfoetanolamina) no Brasil, que, como se sabe, mostrou-se inefetiva contra o câncer após os testes científicos regulares. Ou seja, o capitão reformado sempre atuou na saúde a partir de uma noção senso comum em tensão com uma visão técnica e é essa a visão que Bolsonaro procura reestabelecer.

No entanto, como a sua rede de ratificação na internet ruiu e a grande imprensa finalmente aceitou fazer um trabalho de esclarecimento sobre as disputas políticas na conjuntura, Bolsonaro pela primeira vez desde 2018 não conseguiu retomar a sua concepção antigovernabilidade e antipolítica. Foi a partir daí que começou a ruir a hegemonia bolsonarista construída cuidadosamente na esteira do antipetismo.

A rápida derrocada do governo Bolsonaro se dá devido a sua incapacidade de mobilizar a sua rede de fake news contra o discurso do isolamento social na epidemia, o que acabou por reabilitar a política e tensionar de vez a relação do presidente com grupos centrais até então apoiadores da antipolítica, a grande mídia e a classe média mobilizada nas varandas e janelas das grandes cidades brasileiras.

A oposição ao presidente entrou nas instituições políticas e chegou a lugares nunca dantes imaginados: os militares e membros do seu ministério. A pergunta é: Bolsonaro é capaz de sobreviver sem sua rede de fake news e o ataque via senso comum às concepções científicas? Duas alternativas se colocam, mas, em ambos os casos, o fim do bolsonarismo parece se anunciar: a primeira alternativa é o impeachment ou a renúnciaBolsonaro perdeu ou consolidou a perda de três formas de apoio decisivos para governar: ele consolidou a perda de apoio no Congresso e no STF de forma mais radical que antes ao passar a imagem de irresponsável e incapaz de governar.

Ele perdeu apoio no seu ministério até mesmo entre ministros com forte centralidade como Sergio Moro e Paulo Guedes que já não são mais neutralizados pelo presidente. Mas, sobretudo, ele perdeu o apoio nas redes sociais e nas classes médias que liquidou aquilo que é a característica mais forte do Bolsonarismo: o tensionamento do sistema político realizado em uma base cotidiana.

A outra possibilidade além da sua remoção é o surgimento de um “Bolsonaro cordato” que não ataca nem o sistema político e nem a mídia, aquele que o Brasil viu pela primeira vez na terça-feira à noite. O problema com esse “Bolsonaro cordato” é que ele perde o seu núcleo mobilizador, ou seja, desemprega o pessoal do “gabinete do ódio”, incentivado pelos seus filhos e apoiadores de primeira hora. O dilema do Bolsonarismo é que ele não pode tensionar oposição, sistema político e mídia devido à nova coalizão formada pelo combate ao coronavírus e ele não pode sobreviver sem os tensionar porque ele não tem uma proposta de governabilidade, apenas de mobilização extrainstitucional contra esses setores.

Se a renúncia virá ou se virá um Bolsonaro cordato ainda não está claro. Mas tanto o “Bolsonaro cordato” quanto a renúncia representam o fim da proposta de um governo extrainstitucional de mobilização nas redes socais e nas ruas e sem preocupação com as políticas públicas que foi cuidadosamente construído pela grande mídia, pela operação Lava Jato e pelos fundamentalistas das redes sociais.

Notas

[1] As principais evidências nessa direção foram oferecidas pela Vazajato. Segundo publicação do site The Intercept obtida a partir de vazamento do aplicativo de mensagens Telegram, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi citado na Lava Jato nove vezes e nem todas as citações envolviam crimes prescritos. Sérgio Moro, em 13 de abril de 2017, argumentou pela prescrição dos possíveis crimes. Diversos órgãos de imprensa relataram o e-mail de FHC para Marcelo Odebrecht no qual havia até número de conta bancária. Em relação a José Serra as evidências eram ainda maiores de contas no exterior com recebimento de recursos ilegais.

SOBRE O AUTOR: Membro do Comitê Científico do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares, Leonardo Avritizer é graduado em Ciências Sociais pela UFMG (1983), mestre em Ciência Política também pela UFMG (1987), e doutor em Sociologia Política na New School for Social Research (1993). Concluiu pós-doutorado pelo Massachusetts Institute of Technology (1998-1999) e (2003). Atualmente é professor titular da Departamento de Ciência Política da UFMG. Foi representante de área da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (2005-2011), professor visitante da USP (2004), da Tulane University (2008) e da Universidade de Coimbra (2009). Foi diretor da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (1997-1998) e atual presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (2012-2014). É membro do Conselho Consultivo da International Political Science Association (IPSA). É autor dos seguintes livros: Democracy and the public space in Latin America (2002) e A moralidade da democracia (1996) – prêmio melhor livro do ano (ANPOCS), Participatory Institutions in Democratic Brazil (2009), Los Desafios de la Participación en América Latina (2014).

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