Trump e o triunfo definitivo do neoliberalismo. Artigo de Branko Milanović

Em 15/04/2020, por Cepat via IHU.

Políticas do governo brasileiro atual podem elevar desigualdade ...
Branko Milanovic

“Há aqueles que se queixam que Trump, nesta crise, carece da compaixão humana mais elementar. Ainda que tenham razão no diagnóstico, não conseguem entender a origem desta falta de compaixão. Como qualquer proprietário rico, não acredita que seu papel seja demonstrar compaixão a seus assalariados, mas, ao contrário, decidir o que deveriam fazer e, inclusive, se tiver a oportunidade, baixar seus salários, obrigá-los a trabalhar mais ou descartá-los sem compensação. Ao se comportar assim com seus supostos compatriotas, simplesmente está aplicando a uma área chamada “política” os princípios que aprendeu e usou, durante muitos anos, nos negócios”, escreve Branko Milanović, economista sérvio-americano e professor da Universidade da Cidade de Nova York, em artigo publicado por Letras Libres, 08-04-2020. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

As sociedades modernas capitalistas estão construídas sobre uma dicotomia. No espaço político, as decisões são tomadas (ou devem ser tomadas) seguindo um princípio de igualdade, onde a voz de todos conta igual e a estrutura do poder é plana. No espaço econômico, o poder é ostentado pelos proprietários do capital, as decisões são ditatoriais e a estrutura do poder é hierárquica. Sempre foi muito complicado manter o equilíbrio nesta dicotomia.

Às vezes, os princípios políticos de igualdade nominal costumam se intrometer no espaço econômico para limitar o poder dos proprietários: os sindicatos, a habilidade de processar empresas, as regulamentações contra a discriminação, a contratação e a demissão. Em outras ocasiões, é a esfera econômica que invade a política: os ricos são capazes de comparar políticos e impor as leis que desejam.

A história do capitalismo pode ser entendida rapidamente como a luta entre estes dois princípios: é o princípio democrático que se “exporta” da política para governar também a economia ou é o princípio hierárquico das organizações empresariais que invade a esfera política? Na social-democracia, geralmente, era o do primeiro. No neoliberalismo, o segundo.

O neoliberalismo justificou e promoveu a introdução de princípios puramente econômicos e hierárquicos na vida política. Ainda que tenha mantido a pretensão de igualdade (uma pessoa, um voto), a erodiu graças à habilidade dos ricos em selecionar, financiar e eleger os políticos que se simpatizam com seus interesses. O número de livros e artigos que documentam o poder político crescente dos ricos é enorme. Não resta qualquer dúvida de que é o que vem ocorrendo, há quarenta anos, nos Estados Unidos e em muitos outros países.

A introdução das regras de comportamento empresariais na política traz como consequência que os políticos deixem de ver as pessoas que governam como concidadãos e comecem a vê-las como empregados. Os empregados podem ser contratados e demitidos, podem ser humilhados e menosprezados, exauridos, enganados e ignorados.

Antes da chegada de Trump ao poder, a invasão do espaço político pelas regras de comportamento econômicas foi mantida oculta. Existia a pretensão de que os políticos tratavam as pessoas como cidadãos. A bolha explodiu com Trump. Incapaz de aplicar a sutileza da dialética democrática, não viu nada de ruim em aplicar regras empresariais à política. Provinha do setor privado e de setores especialmente inclinados à pilhagem, como o mercado imobiliário, as apostas e Miss Universo, e pensou com razão – apoiado pela ideologia neoliberal – que o espaço político é simplesmente uma extensão da economia.

Muitos acusam Trump de ignorante. Mas acredito que esta é uma maneira equivocada de olhar as coisas. Talvez não esteja interessado na constituição estadunidense, nem nas regras complexas que regulamentam a política em uma sociedade democrática, pois, conscientemente ou intuitivamente, acredita que não deveriam importar ou inclusive existir. As regras com as quais está familiarizado são as regras das empresas: “Está demitido!”, uma decisão puramente hierárquica, baseada em um poder consagrado pela riqueza e sem o controle de qualquer outro tipo.

Ao introduzir a economia na política, os neoliberais causaram muito dano ao valor “público” da tomada de decisões e à democracia. Levaram muitos países a um estágio inferior ao das sociedades governadas por déspotas egoístas. Mancur Olson, em sua famosa distinção entre governantes nômades e sedentários, conta a anedota de um camponês siciliano que apoia o governo déspota de um só homem porque o governante tem um “interesse muito amplo”. Para manter seu poder e maximizar as receitas por impostos, deve ter um interesse na prosperidade de seus súditos. É algo diferente, e muito melhor, segundo Olson, que um bandido nômade que, como os invasores mongóis, tem interesse apenas na extração temporal de seus súditos.

Por que um governante neoliberal é melhor que um déspota com um “interesse muito amplo”? Justamente porque carece desse “interesse muito amplo”, em sua ordem política, e não vê a si mesmo como parte dele. Em vez disso, é o dono de uma empresa enorme chamada, nesse caso, Estados Unidos da América, onde decide quem deve fazer o quê.

Há aqueles que se queixam que Trump, nesta crise, carece da compaixão humana mais elementar. Ainda que tenham razão no diagnóstico, não conseguem entender a origem desta falta de compaixão. Como qualquer proprietário rico, não acredita que seu papel seja demonstrar compaixão a seus assalariados, mas, ao contrário, decidir o que deveriam fazer e, inclusive, se tiver a oportunidade, baixar seus salários, obrigá-los a trabalhar mais ou descartá-los sem compensação. Ao se comportar assim com seus supostos compatriotas, simplesmente está aplicando a uma área chamada “política” os princípios que aprendeu e usou, durante muitos anos, nos negócios.

Trump é o melhor estudante do neoliberalismo porque aplica seus princípios sem dissimulação.

Fonte; IHU on line