“Revogaço” ameaça humanização da Saúde Mental

Movimento Antimanicomial denuncia o desmonte da Rede de Atenção Psicossocial

Credito:Gabriela Barros/Brasil de Fato
Crédito: Gabriela barros / Brasil de Fato

Andréa Castello Branco

Portadores de sofrimento mental atônitos, com medo, sem saber onde procurar ajuda. Trabalhadores dedicados a tratar de forma humanizada seus pacientes se sentindo desrespeitados e diminuídos. Esse foi o efeito da recomendação do Conselho Regional de Medicina (CRM) à Prefeitura de Belo Horizonte para a “intervenção ética” dos Centros de Referência em Saúde Mental (Cersam’s) anunciada na imprensa. “Alguns pacientes entraram em crise, outros chegaram no Cersam perguntando se iriam fechar, onde procurar ajuda no caso de uma crise. Foi um desespero completo, uma sensação de medo e insegurança”. Quem descreve a cena é Laura Fusaro, coordenadora da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental (Assussam) e conselheira de Saúde de Belo Horizonte.

A principal alegação para medida tão drástica seria a identificação de “irregularidades”, a principal delas, a ausência de médicos psiquiatras em tempo integral. Os Cersam’s são parte da Rede de Atenção Psicossocial (Rap’s), prevista no Sistema Único de Saúde (SUS), e foram criados em substituição aos manicômios, tendo como objetivo o atendimento integral e humanizado das pessoas com sofrimento mental. Pacientes, trabalhadores e gestores da Saúde afirmam que por trás da aparente intenção do CRM de melhoria do serviço estaria a defesa do mercado médico.

“O que está em disputa são dois modelos de assistência. O CRM se posicionou a favor de modelo psiquiátrico, hospitalar, onde o médico é o protagonista. O nosso modelo é psicossocial, do cuidado em liberdade, onde os saberes de vários profissionais são compartilhados. São equipamentos de saúde que oferecem um acompanhamento multidisciplinar do paciente sem que ele seja apartado da sociedade”, explica o psiquiatra e psicanalista Fernando Siqueira, coordenador de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte. 

Segundo o psiquiatra, o CRM está exigindo que os Cersam’s tenham médico in loco durante todo o tempo e um diretor técnico, também médico, em cada centro de referência. “Nós já temos médicos psiquiatras em todos os Cersam’s e dois serviços de atendimento de emergências noturno. Não estamos dizendo que o Cersam não precisa de médico, o que defendemos é que o paciente precisa do conhecimento dos demais profissionais. A meu ver, o CRM tem um entendimento equivocado do que é o Cersam, do que é o trabalho em rede e do que é o SUS”, comenta Siqueira.  Laura Fusaro, usuária do serviço, compara: “nem mesmo os hospitais psiquiátricos têm médico 24 horas, quem cuida dos pacientes são enfermeiros e psicólogos. O que precisa ter é retaguarda para crises noturnas, e isso existe nos Serviços de Urgência Psiquiátrica”. 

O acirramento do CRM-MG diante dos serviços que substituem a internação é um desdobramento do posicionamento do Conselho Federal de Medicina, que ajudou a forjar a chamada Nova Política de Saúde Mental, aprovada na Comissão Intergestores Tripartite do SUS e publicada em dezembro de 2017 e que prevê o que os movimentos de luta antimanicomial chamam de  “revogaço” de cerca de 100 portarias que estruturam serviços e programas no Sistema Único de Saúde (SUS). A publicação, do dia 6 de dezembro de 2020, foi seguida por críticas e resistência de entidades, pesquisadores/as e militantes da luta antimanicomial.  

O “revogaço” colocaria em risco os serviços voltados para a reabilitação de pacientes que passaram por longas internações psiquiátricas e para a população em situação de rua: as equipes de Consultório na Rua, o Serviço Residencial Terapêutico e o Programa de Volta para Casa. As mudanças podem atingir ainda os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), com a extinção do atendimento psiquiátrico e das unidades voltadas aos usuários de álcool e drogas. Os Caps permaneceriam apenas com os serviços de reabilitação.

Na prática, isso representa o desmantelamento da Rede de Atenção Psicossocial, o aumento da população presa dentro de manicômios e o enfraquecimento do cuidado às pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas. A extinção desses serviços também significará uma redução dos repasses financeiros aos municípios de pequeno e médio porte e o desfinanciamento dos Caps.

Mas, afinal, qual estrutura os municípios de Belo Horizonte, Betim e Contagem possuem para atender os portadores de sofrimento mental? Quais políticas públicas são adotadas e quais as principais carências existentes hoje? Hilton Soares de Oliveira, médico coordenador do Programa Saúde da Família em Betim e que responde também pela política de Saúde Mental do município, conta que na cidade a Rede de Atenção Psicossocial está inserida em todos os níveis de atenção à saúde, desde a atenção básica até a média e alta complexidade. Betim conta com três Cersam’s, um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas, (CapsAD), uma residência terapêutica, Consultório de Rua e o CentroPop para atender a população de rua. 

“Seguimos o que preconiza o Ministério da Saúde e o próprio SUS. Betim, historicamente, tem um programa de saúde mental que é referência, possui um serviço muito bem estruturado. O que estamos notando é a criação de novos dispositivos de atendimento. São políticas que vão em desencontro ao que foi conquistado pelos usuários do serviços de saúde mental”, comenta Hilton Soares de Oliveira.

Os novos dispositivos a que se refere o médico são as comunidades terapêuticas, entidades privadas, muitas delas de cunho religioso, que encontraram na saúde mental um filão de negócios. “Nosso questionamento é quanto à abordagem e ao financiamento, porque percebemos que, proporcionalmente, estão sendo destinados pelo governo federal mais recursos às comunidades terapêuticas do que ao SUS. Existem entidades sérias, que fazem um bom trabalho, mas a questão é que são entidades difíceis de serem reguladas pelo poder público do ponto de vista da vigilância sanitária e mesmo da abordagem terapêutica”, analisa.

Segundo ele, o financiamento do SUS hoje é insuficiente diante do crescimento da demanda da população por atendimento para diversos transtornos mentais causados pela pandemia. “Percebemos um aumento da demanda por serviços. Os transtornos mentais aumentaram e cada vez mais gente tem precisado de atendimento. Recursos que poderiam fortalecer o SUS estão indo para comunidades terapêuticas”, diz. Para dar conta do recado, Betim está fazendo o matriciamento da saúde mental no território e criando Equipes de Saúde Mental que irão trabalhar em parceria com as Equipes de Saúde da Família.

Rede de Atenção precisa ser fortalecida

Em Contagem, cidade com quase 700 mil habitantes, o atendimento a pacientes também é feito em todos os níveis de atenção e além dos equipamentos de Saúde – CAP’s e Centros de Convivência -, a cidade também possui oito equipes de Saúde Mental que trabalham paralelamente às equipes de Saúde da Família. Bárbara Ferreira, diretora de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Contagem, acredita que o momento é de grande retrocesso no campo da cidadania e garantia de direitos no país.

“Nesse contexto, a Saúde Mental é uma das mais ameaçadas porque seu ponto de partida é uma política que tem a cidadania e a liberdade como paradigmas. Somos um ponto de resistência a uma visão conservadora e retrógrada. Os serviços substitutivos só são possíveis com o SUS e sua visão de integralidade”, comenta a gestora. Bárbara Ferreira faz uma comparação entre o que a população viveu no último um ano e meio e a tentativa de retorno ao modelo manicomial.

“A pandemia colocou em evidência o quão prejudicial é o isolamento social e traz à tona a importância da convivência. Mostra a importância da construção em liberdade. Como podemos, depois de tudo que vivemos nos últimos meses, apontar a exclusão, o isolamento, como forma de lidar com os portadores de sofrimento mental?”, questiona a diretora da Prefeitura de Contagem.

Laura Fusaro, coordenadora da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental (Assussam) e que acompanha usuários e as políticas públicas de Saúde Mental na região metropolitana, faz um diagnóstico dos principais gargalos. Segundo ela, embora Belo Horizonte teoricamente possua 150 equipes de Saúde Mental, não se pode chamar de “equipe”. “O que temos é um psicólogo e só. Precisamos de equipe de verdade – com terapeuta ocupacional, assistente social, enfermeiro -, multifuncional e articulada com as equipes de Saúde da Família”, avalia. Além disso, Laura também reivindica a nomeação dos aprovados em concurso público e a educação permanente dos servidores, uma vez que os portadores de sofrimento mental ainda sofrem muita discriminação em serviços como o SAMU e UPA’s.

Ela afirma que depois de muitos anos de desconstrução, a política de Saúde Mental em Contagem está “renascendo”. “A prefeita tem honrado o compromisso de melhorar a gestão e está convidando os usuários para construir a Rede de Atenção Psicossocial. Não se faz Saúde Mental sem a participação de quem precisa e utiliza o serviço”, ensina. Quanto ao município de Betim, Laura é taxativa: “a cidade já foi referência, mas hoje vivemos um problema grave com organizações sociais e comunidades terapêuticas assumindo o serviço. O que estamos vendo é a criação de depósitos de pessoas, dependentes químicos, LGBT’s desprezados pelas famílias, gente que nem deveria estar ali. É a privatização do SUS”, finaliza.

O que os municípios oferecem

Belo Horizonte

8 Cersam’s

3 Cersam Infantil

5 Caps Álcool e outras Drogas

9 Centros de Convivência

34 Residências Terapêuticas

2 Serviços de Plantão Psiquiátrico

10 leitos em hospital geral

150 de equipes de Saúde Mental nas UBS

Betim

3 Cersam’s

1 Caps Álcool e outras Drogas

1 Residência Terapêutica

1 Centro de Atendimento a População de Rua

Contagem

2 Caps 24 horas

1 Caps Álcool e outras Drogas

1 Caps Infantil

1 Centro de Convivência

2 Residências Terapêuticas

1 Consultório de Rua

8 Equipes de Saúde Mental

Diretrizes da Rede de Atenção Psicossocial

  • Respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia, a liberdade e o exercício da cidadania.
  • Promoção da equidade, reconhecendo os determinantes sociais da saúde.
  • Garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar.
  • Ênfase em serviços de base territorial e comunitária, diversificando as estratégias de cuidado, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares.
  • Organização dos serviços em RAS regionalizada, com estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado.
  • Desenvolvimento da lógica do cuidado centrado nas necessidades das pessoas com transtornos mentais, incluídos os decorrentes do uso de substâncias psicoativas.

O que é a Luta Antimanicomial

Os horrores dos hospícios brasileiros fizeram surgir os movimentos de luta antimanicomial, ainda na década de 1970, a partir da reivindicação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. O movimento criticava a cronificação do manicômio e uso do eletrochoque e reivindicava humanização dos serviços dos portadores de sofrimento mental. Em 1979, em Belo Horizonte, o III Congresso Mineiro de Psiquiatria propôs formas alternativas de assistência psiquiátrica e daí surgiu o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, constituído por trabalhadores, profissionais, políticos, empresários, usuários e familiares, um espaço de articulação de ações coletivas fundadas na solidariedade às pessoas com sofrimento mental. 

O movimento antimanicomial ganhou força internacionalmente e nos anos 1980 a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a gravidade dos problemas envolvendo a saúde mental e admitiu a impossibilidade de o seu cuidado ficar a cargo exclusivo de médicos, indicando a descentralização dos serviços existentes e a integração de serviços psiquiátricos em unidades de cuidados gerais, a formação de cuidadores não especializados e o aumento da participação da comunidade.

Reforma Psiquiátrica 

A partir da exposição dos abusos cometidos nas casas psiquiátricas, chegou-se à conclusão de que era necessário o desenvolvimento de uma rede em que os componentes, mesmo independentes, são indispensáveis. A mudança central é considerar a pessoa com diagnóstico de sofrimento mental como verdadeiro sujeito de direitos, e não como um objeto de intervenção do laboratório psiquiátrico-forense. 

Com a aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica – 10.216/2001 -, foi garantida a progressiva extinção dos manicômios e sua substituição por outras soluções assistenciais, ultrapassando o modelo hospitalar. As internações desprovidas de serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer e outros recomendados ao doente, tendo como características “instituições asilares”, foi proibida pela referida lei, sendo então vedada a internação em instituições que não garantam aos pacientes os direitos previstos em lei: receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento e  ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. 

Assim, a lei salienta os direitos de pessoas com sofrimento mental, para que obtenham junto ao Estado o acesso ao melhor tratamento e, que seja digno com o objetivo exclusivo de beneficiar sua saúde para que possa ser reinserido socialmente.