Desigualdade econômica e preconceitos rondam tratamento a migrantes

Em duas reportagens, Nesp mostra a carência de políticas públicas para enfrentamento do movimento migratório na Região Metropolitana de BH

Por Marcelo Gomes – 14 de dezembro de 2021

Os migrantes constituem uma parte da população bastante diversificada. São originários de várias nacionalidades, falam línguas diferentes e, sobretudo, vêm ao Brasil com interesses distintos. Uns vêm a trabalho ou estudo. Outros, para se refugiarem de perseguições. Parte deles consegue se estabelecer bem. Outros, porém, são altamente vulneráveis e dependem de ações governamentais.

Segundo relatório do Ministério da Justiça, divulgado no início de dezembro, entre 2011 e 2020, residiam no país cerca de 1,3 milhão de migrantes. O Brasil não está entre os destinos mais procurados. O principal destino migratório são os Estados Unidos, onde, no ano de 2020, havia 50,6 milhões de imigrados.

Em Belo Horizonte, Betim e Contagem, de acordo com dados de 2016, eram aproximadamente 13 mil os migrantes que procuravam se estabelecer nessas cidades. Dois anos depois, o Atlas da Migração Internacional registrava 35 mil migrantes no estado. A partir de 2016, o fluxo de migrantes venezuelanos e haitianos cresceu no Brasil. Em Minas Gerais, a Região Metropolitana de Belo Horizonte é o local que mais recebe pessoas de ambas as nacionalidades.

Dados da ONU mostram que 5,4 milhões de pessoas saíram da Venezuela. Levando em conta a população venezuelana em 2015 – início da intensa migração –, isso significa que 15% dos habitantes migraram. Também a vinda de haitianos aumentou. Terremotos e furacões devastaram o Haiti e o Brasil tornou-se refúgio para muitos. A nação ainda enfrenta difícil conjuntura econômica e política, em razão da qual lá a pobreza não para de crescer.

Os haitianos e venezuelanos que estão no Brasil, em sua maioria, se enquadram na categoria de refugiados. São 59,1 mil e representam um pouco menos de 5% dos migrantes existentes no país.

Tal quantidade se refere às pessoas que já tiveram reconhecida sua condição aqui no Brasil. Existe, no entanto, um longo processo entre a solicitação de refúgio e o reconhecimento definitivo. Em 2019 e 2020, houve 111,4 mil haitianos e venezuelanos que solicitaram o refúgio.

Muitos saíram de seus países por causa de catástrofes naturais, perseguições políticas ou religiosas, violações de direitos humanos, entre outras questões. Não é raro que tais pessoas cheguem sem documentos e apenas com a roupa do corpo. Uns ainda atravessam as fronteiras famintos e em más condições de saúde.

José Miguel Silva Ocanto está no Brasil desde 2018. Em seu país, ele era militante estudantil e crítico ao governo Nicolás Maduro. Após ser perseguido pela polícia, não houve escapatória, senão migrar para o Brasil. Graças a uma rede de amigos que tinha por aqui, ele conseguiu se fixar bem. Hoje em dia, estuda Psicologia na PUC Minas e trabalha no Serviço Jesuíta de Atendimento a Migrantes e Refugiados. Ele vive com o irmão e o pai. A mãe ficou na Venezuela. “Em 2017 as ameaças que sofri pioraram. Fui sequestrado e minha família estava sendo ameaçada. Foi aí que vi que era hora de ir embora”, relembrou.

Para José Miguel, apesar das avançadas legislações e da boa imagem acolhedora do Brasil, existem preconceitos. “Eu enfrentei preconceito no Brasil. Na fronteira, houve pessoas que cuspiram em mim… Mas existe outra forma de discriminação velada: quando não se fala da história dos migrantes. Se fala apenas do lado negativo de suas vidas, reduz as histórias deles apenas a essas questões. É uma forma de discriminação”, comentou.

A desigualdade no tratamento dispensado aos migrantes

A diferença de recursos financeiros ou de capital intelectual chama atenção entre os migrantes. Dados do Ministério da Justiça de 2019 mostram que o rendimento médio mensal dos estrangeiros norte-americanos, no mercado de trabalho formal, era de R$ 19,7 mil. O rendimento médio dos europeus era de R$ 14,8 mil. Por outro lado, migrantes originários de países da América Central e do Caribe ganhavam em média R$ 1,7 mil.

Essa diferença existe porque os norte-americanos e europeus possuem melhores condições financeiras e mais anos de estudos. Chegam ao Brasil, em sua maioria, como mão de obra qualificada. “Para o país, é bom absorver esses “cérebros” bem capacitados. Isso nos ajuda em muito a ampliar nosso conhecimento em diversas áreas. Mas, não devemos desconsiderar os outros migrantes. Afinal, cada um deles têm vivências e conhecimentos únicos, que se bem utilizados, podem contribuir muito com o desenvolvimento do país”, opinou Danny Zahreddine, professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e coordenador da Cátedra Sérgio de Melo, da ONU, sediada na universidade. Essa cátedra é um núcleo que presta serviços aos migrantes e difunde estudos e informações relativas a essa população.

“É visível a diferença de tratamento que damos, por exemplo, ao migrante haitiano. Além de ser estrangeiro ele é negro. É por causa disso e outras questões envolvendo essa população que temos sérias dificuldades em integrar os migrantes”, diz o professor. “Eu defendo que as comunidades migrantes tenham um canal de diálogo com o estado”, completou o docente, migrante libanês.

José Miguel Silva Ocanto, venezuelano de 28 anos, responde enfático à pergunta pelo que os poderes públicos poderiam fazer: deve-se deixar os migrantes falarem por si. “Falta dar espaços de genuína participação”, pontua o migrante que critica a maneira como a mídia tende a enquadrar os migrantes, em especial, venezuelanos e haitianos, somente como miseráveis.

José Miguel constata que é comum que jornais reiterem somente a dramática situação em Pacaraima, cidade de Roraima que é porta de entrada para muitos venezuelanos. Eles acabam reduzidos apenas à sua pobreza. Em contraposição, novelas e filmes retratam a migração alemã e italiana como sinônimo de bravura e êxito econômico.

Segundo José Miguel, essa noção sobre haitianos e venezuelanos impede que eles sejam protagonistas na elaboração das próprias políticas. “A migração me ensinou que a diferença é um valor humano, mas eu vejo que, cada vez mais que me pareço com um brasileiro, sou mais valorizado”.

“Isso reforça a aporofoboia, conceito usado pela filósofa espanhola Adela Cortina”, explicou. ‘Á-poros’ significa pessoa sem recursos e ‘fobia’ é medo. Isto é, fobia de pobres. “É preconceito contra pessoas sem recursos que, a princípio, não têm nada a oferecer e não podem ditar os rumos de suas vidas”.