Proposta do governo federal para Carlos Prates fere a lei e acentua desigualdades

Ideia é vender 547 mil metros quadrados para fundo imobiliário

Fonte: Superintendência de Comunicação Institucional da Câmara de Belo Horizonte

Marcelo Gomes – 11/03/2022 – atualizada em 14/03/2022

A disputa pela área do Aeroporto Carlos Prates em Belo Horizonte é, hoje em dia, uma das grandes batalhas de política urbana na capital. As atividades aeroportuárias ocorrerão, em princípio, até 1 de maio deste ano. Ainda não se sabe qual será o destino dos 547 mil metros quadrados do local. Nesta e em outra reportagem, a Assessoria de Monitoramento dos Poderes Públicos – Nesp discute o futuro desse espaço.

Uma alternativa que parecia estar se consolidando seria vender a área do aeroporto para um fundo imobiliário. Mas, recentemente, segundo o senador Alexandre Silveira (PSD), essa ideia foi suspensa graças a uma articulação conduzia por ele. Não há mais detalhes sobre, por exemplo, até quando pousos e decolagens ocorrerão bem como o destino da área. O governo federal não se pronunciou oficialmente, até o momento, sobre essa informação. O Ministério da Economia, responsável pelas vendas de patrimônios da União, disse que não irá se pronunciar a respeito do aeroporto. Na imprensa, o assunto é tratado timidamente. O foco é o cancelamento da privatização de um terreno no Belvedere.

A sugestão de construir um bairro no Carlos Prates surgiu do dono do campo de aviação, o governo federal, por meio de sua Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia (ME).

Solicitamos detalhes à pasta, a qual disse que não iria comentar o assunto. Também pedimos uma entrevista com Diogo Mac Cord, responsável pela referida secretaria. Ele não dispõe de tempo para isso, segundo sua assessoria. Por sua vez, a Infraero, empresa do Executivo nacional responsável por aeroportos, disse que apenas o Ministério da Economia pode comentar as propostas relativas ao Carlos Prates.

Em razão do silenciamento da União, a única fonte de informações mais acessível sobre a sugestão do governo federal é um artigo de Diogo Mac Cord, publicado no jornal O Tempo, bem como sua fala em audiência pública na Câmara dos Deputados.

Em síntese, a ideia seria entregar a área a um fundo imobiliário. Ou seja, a sociedade perderia a última grande área urbana pública na cidade, pois a penúltima foi a Mata dos Morcegos, recentemente transformada na Arena MRV.

Segundo Diogo Mac Cord, o Plano Diretor de Belo Horizonte permite o uso residencial do Carlos Prates. Esse plano é a lei que regula o uso e ocupação do solo municipal. “Portanto, é possível criar, do zero, um bairro planejado, com enorme área verde, que ajudará a capital a contornar seu problema de falta de habitação, ao mesmo tempo em que trará ganhos incríveis de lazer à comunidade local. É muito egoísmo ser contra isso!”, argumentou o secretário no artigo.

Ainda no texto, Diogo rechaça a criação de um parque no local porque “já aconteceu com cerca de 20 hectares do aeroclube do Carlos Prates, que, há alguns anos, foi cedido à prefeitura de Belo Horizonte para – adivinhem – construírem um parque. Nada aconteceu, a área foi abandonada e invadida e acabou sendo devolvida à União. Todos perderam”.

É importante observar que o secretário se refere a uma área em que foram implantadas uma quadra e uma pista de skate, sem qualquer ambientação do ponto de vista paisagístico e sem considerar demandas de outros públicos, como crianças e idosos.

Além disso, a lei municipal 11.181 de 2019, que institui o Plano Diretor, classifica aproximadamente 122 mil metros quadrados da área do Carlos Prates como área de Proteção Ambiental e cerca de 425 mil metros quadrados como grande equipamento de uso coletivo. Já a maior parte do entorno é considerada como Zona de Ocupação Moderada. O Artigo 94 da norma restringe a ocupação do solo nessas zonas, entre outras questões, porque são bairros tradicionais. Esse é o caso do bairro Padre Eustáquio, onde está o aeroporto, que faz divisa ainda com os bairros Dom Bosco, Inconfidência, Jardim Montanhês, Jardim São José, Minas Brasil e Monsenhor Messias.

A ocupação, conforme a lei, seria permitida somente para as residências de interesse social, aquelas destinadas a pessoas desprovidas de recursos para adquirir um imóvel. Em vista disso, a disputa pelo local interessaria a movimentos sociais de luta por moradia. A lei permite ainda a destinação da área à instalação de parques e outros equipamentos de uso coletivo, como hospitais, escolas, ou posto de saúde.

É importante ressaltar que, até por questões relativas ao pacto federativo, mesmo sendo o governo federal dono da área, ele deve obediência à lei municipal. E, como visto, a proposta da União se choca com o Plano Diretor. Isso porque, ao entregar o espaço do Carlos Prates a um fundo imobiliário, a localidade tenderia a abrigar moradias para segmentos abastados. Afinal, os fundos de imóveis iriam lucrar atendendo apenas públicos de alta renda.

“O governo federal quer privatizar uma área pública para benefício das grandes construtoras. Essas iniciativas não contemplam de fato a grande população que representa o déficit habitacional. Quase 90% dos que estão nesse déficit ganham de 0 a 3 salários mínimos e essas habitações (financiadas pelos fundos) não abrigam essas pessoas. Pessoas de classe média acabam se beneficiando”, analisa Viviane Zerlotini, professora da PUC Minas.

De fato, uma parte da área foi repassada ao município e posteriormente devolvida à União. Contudo, a professora Viviane também se contrapõe à fala do secretário Diogo Mac Cord: “sugerir que a prefeitura abandonou a área é falacioso. Acontece hoje que os recursos públicos são desviados para outros interesses. Daí a desculpa de que tem que privatizar porque a prefeitura não tem como fazer a administração”.

O projeto que vem sendo defendido pelo governo federal acarreta ainda outro desafio: a gentrificação urbana. Em linguagem simples, gentrificar é enobrecer um espaço. Há gentrificação se uma área construída passa por modificações sendo apropriada por interesses financeiros/privados e dirigida a um setor altamente capitalizado. Quando a gentrificação ocorre, os bens e serviços da localidade são destinados para cidadãos com mais recursos. Logo, os mais pobres, se veem obrigados a deixar o local em razão do aumento do custo de vida.

Na área do Carlos Prates, a gentrificação poderia acentuar-se em razão de uma pequena parte do perímetro ser de proteção ambiental. Áreas verdes têm maior interesse para a especulação imobiliária e atraem os mais ricos, que podem pagar os altos preços desses locais. Esse processo é chamado de gentrificação verde. Tal fração do aeroporto, portanto, seria um bônus para o fundo imobiliário que adquirisse o Carlos Prates.

“Duas opções seriam boas para o aeroporto: um parque de área verde ou uma mescla entre habitação de interesse social e áreas verdes. O Plano Diretor Prevê isso. A região Noroeste tem poucas áreas verdes. Seria ótimo se uma dessas opções fosse colocada em prática”, comenta Jupira Gomes, pesquisadora em arquitetura e urbanismo e professora aposentada da UFMG.

O Coletivo Cultural Noroeste BH defende que, a partir de maio, o Carlos Prates seja municipalizado, e que a prefeitura instale ali um parque e/ou parque com moradia social. Pesquisa realizada pela organização, entre outubro e dezembro de 2021, constatou que a grande maioria dos 600 consultados desejam no local um complexo de lazer, área verde e esportiva, a exemplo do parque Ibirapuera, em São Paulo.

“A nossa ideia de desativação da área e transformar em um parque, por exemplo, está mais consistente agora. Não podemos perder essa oportunidade. Devemos correr contra o tempo para sensibilizar o maior número de pessoas possível. A construção de prédios não é desejo da comunidade. O Governo federal não ouviu a gente sobre o que fazer com a área”, afirmou Luzia Barcelos. “A gente pede que a população em geral tome conhecimento disso, os mais jovens, todos. Nós estamos em uma encruzilhada”.

A incerteza continua

A prefeitura de Belo Horizonte tem manifestado posições contraditórias sobre a destinação do aeroporto. Em 23 de novembro do ano passado, o prefeito Alexandre Kalil (PSD) encaminhou ao Ministério da Infraestrutura uma carta. Nela, ele pede que a área do aeroporto seja doada à Prefeitura. Segundo o político, com isso, o local continuaria sendo um campo de aviação, sobretudo para a formação de novos pilotos. “Extinguir as atividades das escolas (de pilotagem) em Belo Horizonte, implica, evidentemente, na diminuição de formação de pilotos e técnicos da aviação”, disse. Sua intenção também seria construir no Carlos Prates um museu da aviação.

“Outra ideia proposta é a eventual transferência das operações e escolas do Aeroporto Carlos Prates para o Aeroporto da Pampulha. Essa decisão implicaria um brutal aumento de pousos e decolagens no Aeroporto da Pampulha, inviabilizando completamente seu uso para operação regional”, argumentou Kalil novamente em favor continuação do aeródromo da Noroeste.

Contudo, nos últimos tempos, Kalil vem dando mostras de que é favorável à construção de moradias de interesse social, embora não tenha dito isso de maneira clara e pública. Além disso, o vice-prefeito Fuad Noman (PSD) já disse ser contrário à proposta do governo federal.

Por sua vez, o governo estadual, em 25 de novembro de 2021, enviou uma carta para Diogo Mac Cord e Ronei Glanzmann, secretário nacional de aviação, solicitando a transferência de responsabilidade pelo aeroporto para o Executivo mineiro. Zema alega que as atividades de instrução são fundamentais. Solicitamos ao Executivo estadual esclarecimentos quanto a sua posição. Não tivemos respostas.

Atualmente, o deputado Rogério Correia (PT) discute o destino da área na Câmara dos Deputados. Na Assembleia, o tema está sendo discutido por Beatriz Cerqueira (PT) e, na Câmara Municipal, pelas vereadoras Duda Salabert (PDT) e Macaé Evaristo (PT). Todos esses parlamentares defendem a construção de um parque ou área verde com moradias populares.