Descumprimento da lei e cortes nos recursos da habitação impedem redução do déficit habitacional de Belo Horizonte

Ocupação Maria Carolina de Jesus em prédio abandonado na Avenida Afonso Pena. Foto de 2017. Fonte: Willian Dias/ALMG 

Em matéria anterior, a Assessoria de Monitoramento dos Poderes Públicos do Nesp investigou o déficit habitacional de Belo Horizonte e suas causas. Agora, o objetivo é discutir as possíveis soluções para esse problema que impede o acesso à moradia digna a toda população.  

O Estatuto das Cidades, instituído pela Lei Federal 10.257 de 2001, oferece aos poderes públicos, sobretudo às prefeituras, possíveis meios para acabar com o déficit. O destaque vai para o parcelamento, a edificação, a utilização e o IPTU Progressivo.  

Como visto na matéria anterior, em Belo Horizonte há 64 mil imóveis (não apenas residenciais) sem utilização. De acordo com movimentos sociais e pesquisadores a prefeitura da capital não executa o disposto na lei. Por quê?  

Para Liliam Daniela dos Anjos integrante do MTD (Movimento de Trabalhadores por Direitos) e membro do Nesp, um fator é determinante para que a prefeitura de Belo Horizonte não execute o previsto em lei: “É o fato de a cidade operar em uma lógica pró-mercado apenas. Em Belo Horizonte a moradia é um objeto, não tem um valor de uso, ou seja, não é vista como um direito. E a prefeitura opera nessa lógica, vista quando não se regulamenta dispositivos da lei”, afirma.  

Em sua avaliação, seria em vão lutar apenas por boas leis. O principal deveria ser a luta pela concretização do que já está previsto. “Belo Horizonte tinha um histórico muito bom, se comparado a outras cidades, na implementação de ações habitacionais. Mas de dez anos para cá, há um grande desmonte delas”, sublinha. “Nós temos um recente plano diretor, que é muito avançado. Mas, devemos é lutar para que ele se concretize”.    

Especulação imobiliária 

Há também outra ferramenta disponível no Estatuto das Cidades para atenuar o déficit habitacional. É o desestímulo à especulação imobiliária. Segundo o Estatuto, o controle do solo deve evitar “a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização”.  

Pessoas, empresas ou fundos costumam comprar grande quantidade de imóveis para revendê-los no futuro, quando o preço deles subir. Enquanto ocorre a especulação o imóvel fica vazio.  

A especulação pode gerar prejuízos sociais. Isso porque, ela diminui a oferta de moradias em determinadas regiões, uma vez que somente poucas pessoas ou entes concentram a propriedade de muitos imóveis. O resultado disso é a subida dos preços das moradias, danosa à classe média e, especialmente, aos mais pobres. Se esse tipo de prejuízo for diagnosticado, a norma permite a utilização das medidas citadas.   

A legislação nacional permite ainda que os poderes públicos intervenham para baixar o preço da terra. Os municípios poderiam adquirir terrenos onde o preço do solo é alto, como é o caso da região Centro-sul de Belo Horizonte. Assim, a prefeitura pode viabilizar a construção de unidades residenciais. A ideia é impedir que apenas pessoas abastadas acessem espaços supervalorizados. A prefeitura de Belo Horizonte vem construindo moradias, mas, grande parte delas, afastada dos locais em que há maior oferta de bens e serviços.  

Prefeitura executa ações, mas corta recursos 

Em Belo Horizonte, a prefeitura possui seu próprio departamento de habitação. É a Companhia Urbanizadora e de Habitação, a Urbel.  

Atualmente, a Urbel executa um conjunto de ações em prol da moradia. Recentemente foi criado o Programa de Compra Compartilhada de Imóvel, instituído pelo decreto municipal 17.793/2021. Com o programa, a prefeitura irá conceder até R$ 42 mil para as famílias que ganham até R$ 2,5 mil por mês adquirirem um imóvel. Os imóveis podem ser novos ou usados e serão escolhidos pelas famílias interessadas, que devem morar há pelo menos dois anos na cidade.   

Cidadãos interessados que se enquadrem nesses e em outros requisitos estipulados no decreto podem procurar a Urbel. Os recursos para custear tal programa são do Fundo Municipal de Habitação.  

Outras duas ações oferecem ajuda financeira para aqueles que vivem com o excessivo ônus do aluguel. O Executivo da capital concede a Locação Social, que é oferta de até R$ 500 mensais por prazo indeterminado. Ainda é oferecido o Bolsa Moradia de R$ 600, por um período determinado, às pessoas vítimas de calamidade, alvos de remoção ou que residam em precárias moradias. Segundo informações da Urbel, 10.232 famílias foram contempladas com o Bolsa Moradia em 2021. Não foram divulgados dados relativos à Locação Social.  

Há também três ações que consistem na regularização fundiária e em intervenções específicas em moradias carentes de algum tratamento estrutural, que a família não possa custear. Esses programas consomem a maior fatia do Fundo Municipal de Habitação.   

Por fim, existe o Vila Viva, maior vitrine de política habitacional de Belo Horizonte.  O programa não apenas constrói moradias, mas também toda a infraestrutura necessária à vida, como redes de saneamento, calçadas e postes de transmissão de energia elétrica. Ele se destina aos moradores de aglomerados e favelas.  

O Fundo Municipal de Habitação custeia essas e outras ações, as quais são agrupadas em sete eixos de atuação. A imagem abaixo mostra cada um deles, bem como os valores orçados para este ano.  

O Fundo Municipal de Habitação representa cerca de 1,2% dos R$ 15,3 bilhões previstos para serem arrecadados neste ano pela prefeitura. O percentual equivale a R$ 183,4 milhões.

Entretanto, no decorrer do ano a prefeitura pode injetar ou tirar dinheiro de determinadas ações. Foi o que ocorreu com o fundo de habitação em 2021. De acordo com o orçamento do ano passado, o Executivo prometeu investir R$ 174,3 milhões no Fundo. Mas conforme apuração nos Relatórios Comparativos do Orçamento com Execução, investiu efetivamente apenas, R$ 74,4 milhões. O governo municipal cortou da habitação, portanto, R$ 99,8 milhões aproximadamente.  

Conforma análise nos Relatórios Comparativos do Orçamento com Execução, nos últimos cinco anos vê-se que os cortes predominaram em BH.  Entre 2017 e 2021, o total orçado para o fundo habitacional foi de R$ 1,086 bilhão. Contudo, o valor efetivamente investido nas ações custeadas pela poupança foi 34,3% do total orçado ou R$ 372,2 milhões. Logo, os cortes nos investimentos nesses cinco anos foram de 65,7% aproximadamente. 

Apesar do corte, o governo belo-horizontino se sai melhor do que o Executivo estadual no quesito habitação. A capital investe, sozinha, mais de três vezes o que o Estado destina à área. Em 2021 o governo de Minas aplicou, de acordo com o Portal da Transparência, R$ 26,5 milhões. 

Ações da prefeitura são paliativas, avalia conselheira da habitação 

Ednéia Aparecida de Souza mora na ocupação Terra Nossa do bairro Taquaril. Militante da causa habitacional, ela é uma das representantes da sociedade no Conselho Municipal de Habitação. Segundo Ednéia, parte das medidas do Executivo da capital é paliativa. Ela cita o Bolsa Moradia e a Locação Social “que não podem ser vistas como uma política habitacional, mas sim de emergência para alguns públicos”. Ela explica que a política habitacional eficiente deve prover ao cidadão uma moradia digna e definitiva.   

“Sobre os números do orçamento eles não são realidade: quando a prefeitura diz na peça orçamentária que coloca investimentos na área tal, ela passa uma compreensão de que está produzindo casas, por exemplo. Na verdade, os recursos não chegam aonde devem chegar. Por exemplo, nós daqui do Taquaril aguardamos uma obra desde 2003. E a grande parte do dinheiro do fundo é para obras nas vilas e favelas, não é propriamente para a construção de casas”, diz.  

Segundo ela, parte das unidades habitacionais não foi construída pela prefeitura com recursos próprios. Mas, com recursos de programas do governo federal, como o Minha Casa, Minha Vida (hoje chamado de Casa Verde e Amarela).  

“E o que nós queremos? Primeiro, que os recursos do fundo de habitação sejam uma dotação obrigatória”, diz. Dotação é uma parte do orçamento. A prefeitura pode injetar ou retirar dinheiro do fundo ao longo do ano. Na hipótese de o fundo se tornar uma dotação obrigatória, os valores previstos não mais poderiam ser reduzidos no decorrer do tempo.  “Já teve ano que o fundo não recebeu um centavo”, relembra. “A nossa luta não é apenas por dinheiro, é também aplicar bem esse dinheiro”.  

“O nosso segundo sonho é que os instrumentos que foram aprovados nas conferências de políticas de habitação sejam concretizados. Por exemplo, os instrumentos de justiça social, como o IPTU Progressivo”, completa a conselheira.