Em Genebra, Pastoral Carcerária detalha violações de direitos nas prisões do Brasil
Representada por seu assessor jurídico, o advogado Paulo Cesar Malvezzi Filho, a Pastoral Carcerária Nacional participou nesta sexta-feira, 3 de março, de um evento em Genebra, na Suíça, que discutiu a realidade do sistema carcerário brasileiro.
“De norte a sul do país, é possível afirmar que a marca do sistema prisional brasileiro é a violação sistemática dos direitos dos presos, combinada com o crescimento vertiginoso do número de pessoas presas”, disse Paulo Malvezzi, no início de sua exposição sobre a temática, quando também lembrou que com um aumento médio de 7% no número de presos anualmente e com mais de 620 mil encarcerados, o Brasil ocupa “a nada honrosa quarta colocação entre os países que mais encarceram no mundo”.
O propósito do evento, que também contou com representantes de outras organizações brasileiras, como a Conectas Direitos Humanos e a Justiça Global, foi debater as torturas que ocorrem nas prisões. O relatório Tortura em tempos de encarceramento em massa, lançado em 2016 pela Pastoral, analisou 105 denúncias de tortura nas prisões.
O debate aconteceu paralelamente à reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU. “A grande importância desse evento é poder prover informações diretas sobre o sistema prisional brasileiro para a imprensa internacional, órgãos das Nações Unidas e países que vêm se engajando internacionalmente no esforço de combate à tortura. Também é uma grande oportunidade para criar laços internacionais e articular uma ampla rede de luta contra o encarceramento em massa”, afirmou Paulo Malvezzi.
Violência institucional
O assessor jurídico da Pastoral Carcerária lembrou do trabalho realizado pelos milhares de agentes da PCr em todo o Brasil, que levam não apenas conforto espiritual aos presos, “mas também vão para defender a dignidade dessas pessoas em todas as suas múltiplas dimensões”.
Paulo Malvezzi denunciou, no entanto, que embora a assistência religiosa seja um direito do preso no Brasil, “há relatos de graves restrições ilegais aos serviços prestados por representantes religiosos, não apenas da Igreja Católica, mas de diversas religiões”, com muitas restrições de acesso aos locais onde há privação de liberdade.
Também segundo Paulo, num contexto em que apenas 13% dos presos participa de alguma atividade educativa, somente 20% realiza alguma forma de trabalho, o atendimento médico é extremamente precário e há superlotação e insalubridade nas prisões, “não é surpresa, portanto, que a taxa de mortalidade no sistema prisional seja três vezes maior que no restante do país”.
“A tortura neste ambiente não é apenas uma prática corriqueira, mas se converteu na própria essência do modelo de aprisionamento brasileiro, no encadeamento de múltiplas ações que partem do Estado em desrespeito aos direitos mais básicos das pessoas privadas de liberdade”, enfatizou.
Paulo Malvezzi também teceu críticas à atuação da justiça diante do caos das prisões. “O sistema de justiça, por sua vez, que deveria agir para impor limites a essa situação bárbara, age em sentido praticamente contrário”, lamentou, citando dados do relatório “Tortura em tempos de encarceramento em massa”, lançado pela Pastoral Carcerária Nacional em outubro de 2016.
Segundo o estudo, de 105 casos de tortura analisados pela Pastoral Carcerária Nacional, em 69% as vítimas não foram ouvidas por juízes, promotores e defensores públicos e em 75% das ocorrências testemunhas-chaves da denúncia não foram ouvidas. Nesse sentido, segundo Paulo Malvezzi, juízes, promotores e defensores públicos têm falhado gravemente na responsabilização civil e criminal dos autores das práticas de torturas e maus tratos no sistema prisional brasileiro.
“O sistema penal que atua sistematicamente à margem da lei, torna-se, ele próprio, um empreendimento criminoso. Não podemos entender essa situação apenas como um ataque à dignidade das pessoas encarceradas, mas também como um crime contra a própria humanidade. Essa violência institucional se reflete de inúmeras formas no ambiente carcerário, e muitas vezes se revela de maneira absolutamente brutal”, afirmou, recordando os massacres verificados nas prisões do Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte nas duas primeiras semanas deste ano. “É provável que fatos como este voltem a ocorrer em um futuro próximo, caso o estado brasileiro persista nas atuais políticas de encarceramento”.
Compreender a essência dos problemas das prisões
Paulo Malvezzi também resgatou que desde a década de 1980, há iniciativas no país para tentar “humanizar” as prisões, mas não se tem obtido o sucesso esperado. “Medidas com as audiências de custódia e a criação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura têm demonstrado seus claros limites. Nesse sentido, o Brasil tem realizado investimentos recordes em construção de novos presídios sem qualquer efeito positivo no que diz respeito ao combate à superlotação prisional. Trata-se de um exemplo claro da irracionalidade da política prisional brasileira”, apontou, reforçando que o Brasil está na contramão das recomendações internacionais para a redução no número de presos.
“Mais do que nunca, é necessário compreender o problema do sistema prisional brasileiro, bem como o fenômeno da tortura nesse ambiente, sob uma nova perspectiva, que leve em consideração os estreitos vínculos entre tais violações sistemáticas de direitos e o processo de encarceramento em massa em curso no país. O combate efetivo à tortura e às mazelas do sistema carcerário do Brasil devem necessariamente passar pela construção de um plano abrangente e substancial de redução da população prisional em articulação com todos os poderes da República e demais entes federativos, conforme proposto desde 2013 pela Pastoral Carcerária Nacional, juntamente com o movimento Mães de Maio, Justiça Global e diversas outras organizações da sociedade civil brasileira. Este documento chama-se Agenda Nacional pelo Desencarceramento”, enfatizou.
Ainda segundo Paulo Malvezzi, é indispensável que o Estado brasileiro estabeleça metas concretas de redução da população prisional no país, e isso deve ser efeito a partir de uma revisão da atual política de guerra às drogas, restrição ao uso de prisões cautelares, redução de penas e prazos de progressão de regime, investimentos em programas de reintegração social, promoção de formas horizontais de resolução de conflitos, como a Justiça Restaurativa e o uso intensivo do perdão presidencial para reduzir ou extinguir penas. “Sobretudo, precisamos que haja vontade política para construir essa nova abordagem em relação ao sistema prisional, e para descontruir as antigas percepções e políticas que nos trouxeram até o estágio atual de crise permanente, que é responsabilidade de todos os governos do nosso recente e instável período democrático”.
E para os que pensam que a proposta da Pastoral Carcerária Nacional é uma ousadia, ele deixou um recado. “Tais medidas podem soar ousadas diante do nosso atual cenário político, mas não há nenhuma radicalidade nelas. São apenas medidas que efetivamente necessitamos, nada mais e nada menos. Esperamos que possamos fazer frente a esse desafio, pois não temos dúvidas que seremos julgados por Deus e pela história, pela forma com que tratamos nossos irmãos privados de liberdade”.
Fonte: site Pastoral Carcerária Nacional