Pedro Otoni: seis elementos da conjuntura brasileira
Seja qual for o desfecho da crise atual, a instabilidade não será superada. Após 2018 vai se abrir o debate sobre a necessidade de Nova Constituinte no Brasil.
O artigo é de Pedro Otoni, cientista político e educador popular, publicado por Outras Palavras e republicado por IHU on line.
Artigos opinativos assinados não representam, necessariamente, a opinião do Nesp.
Seis elementos da conjuntura brasileira:
“O golpe, para ser vitorioso,
tem como elementos essenciais
o inesperado e a rapidez com que for executado,
rapidez e surpresa que supõe,
como condição necessária, a traição”
Wanderley Guilherme dos Santos, “Quem dará o golpe no Brasil” 1962
Elemento #1 – Binômio golpista: tempo e traição
O tempo é um recurso crítico para o Governo Temer. Sua sobrevivência está atrelada à capacidade de encaminhar, com ligeireza, a agenda legislativa dos bancos e dos interesses econômicos internacionais, mesmo que para isso, contraditoriamente, requeira desgastar seu principal instrumento de ação (seu vetor de força), a maioria no Congresso Nacional. O que leva um governo a levar a exaustão sua principal ferramenta? Tratarei disso adiante.
Quanto à traição, é possível perceber que não se tratou apenas de um ato (o impedimento da presidente constitucional), mas de uma sistemática, uma forma própria de operar a política no curto prazo.
Internamente ao bloco de poder a traição que se desenvolve em diferentes níveis e cenários, desde as delações premiadas até mutilações recíprocas do corpo das elites (vide os recentes ataques midiáticos aos figurões do PSDB, críticas de políticos golpistas ao judiciário golpista e vice e versa).
Externamente, a traição tem como vítima a soberania nacional (ex: ataques à Petrobras) e aos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, que mesmo limitados, garantem ao povo uma situação distinta da barbárie neoliberal pretendida com a atual agenda legislativa. Ao retirar as garantias de direitos da maioria da população, se rompe, por consequência, com o sentido e a legitimidade estabelecida no arranjo político que estabeleceu o tipo de democracia pactuado em 88, institucionalizado na Constituição Federal e que hoje vige sem o mínimo de eficácia.
Elemento #2 – Relação entre tempo e traição
A gravidade da traição é inversamente proporcional ao tempo de sua execução. Para se obter a vantagem da surpresa deve-se agir com rapidez. Nas teorias da guerra, tal estratégia ficou conhecida por blitzkrieg (guerra relâmpago em alemão), em menção ao estilo estratégico do exército nazista, mas copiado posteriormente pelos japoneses durante a II Guerra Mundial. Com o intuito de garantir a vantagem da surpresa, Hitler rasgou o tratado de não agressão com a URSS, empreendendo uma forte e rápida investida sobre o território soviético.
Assim procedeu Temer em seu golpe: em vez de tanques, usou deputados, o espaço que invadiu foi os direitos e os recursos nacionais. Assim, aproveitou a primeira onda de impacto, que deixou em estado de choque aqueles que poderiam reagir ao golpe, para encaminhar sua agenda neoliberal na questão do estado e feudal na dimensão dos costumes.
Elemento # 3 – O limite da blitzrieg golpista I: quanto mais rápido, mais caro
Assim como na blitzkrieg hitlerista, a estratégia de Temer, apesar do estrago que tem causado, demonstra sinais de fôlego curto. Primeiro pelo custo político alto que requer, segundo pela impossibilidade de contar sempre com a vantagem da surpresa.
A rapidez na aprovação da agenda legislativa do golpe requer um alto custo político. Em termos práticos, para garantir integralmente os interesses financeiros, o governo têm condenado sua base de apoio parlamentar, que em 2016 reunia mais de 300 deputados. A votação da Lei da Terceirização (Lei 13.429/2017), já sancionada por Temer, deixou descalços os calcanhares da maioria golpista no Congresso. Mesmo sendo aprovada (231 votos a favor, 188 contra e oito abstenções), a votação contou com 56 votos contrários originários dos partidos da base aliada de Temer, uma expressão forte da decomposição da capacidade do governo de fidelizar seus apoios parlamentares. A exemplo de Renan Calheiros, que já polariza e se distancia do presidente, a ponto de sinalizar para um apoio a candidatura de Lula em 2018.
Outro indício foi a derrota de Temer na votação da PEC 395/2014 – Projeto de Emenda Constitucional que dispunha sobre a cobrança de mensalidades das universidades públicas federais – tal acontecimento deixou claro que sua força parlamentar vem perdendo a capacidade de administrar suas próprias contradições. A referida PEC foi rejeitada por não atingir os 308 votos necessários às Emendas Parlamentares, a proposta do governo recebeu 304 votos a favor, 139 contra e dois abstenções.
Mas porque está mais difícil a aprovação dos projetos do Palácio do Planalto?
Toda vez que se noticia uma coletiva de imprensa no Ministério da Fazenda, cada membro da base congressual do presidente se pergunta, às vezes em voz alta: “Qual será o problema que o Meirelles vai jogar no meu colo desta vez?”. As iniciativas legislativas (PLs) do governo elaboradas no Ministério da Fazenda são uma temeridade para o próprio golpismo, mas principalmente para o elo mais frágil do consórcio do golpe, o deputado.
Os parlamentares da base de Temer também fazem seus cálculos. Por mais vil que seja este espécime na atualidade, ele é um ser prático, necessita produzir uma narrativa eleitoral que faça sentido, requisito necessário à reeleição, mesmo que tal narrativa seja mentira.
Ao submeter os deputados às pautas sensíveis, o governo ativa o cálculo de custo/benefício do seu apoio e atualmente, ao que parece, o saldo surge como negativo para os deputados.
Em resumo, o governo:
1- expõe a base parlamentar golpista a uma situação difícil devido à natureza radicalmente antipopular das medidas propostas (congelamento de gastos por duas décadas, a contrarreforma do ensino médio, a terceirização generalizada, a reforma da previdência e a trabalhista);
2. ao desgastar os aliados no congresso, amplia-se o risco de não reeleição da base aliada, seja quando for que aconteça as próximas eleições gerais;
3. isso leva os deputados e senadores a não acompanharem o governo para não colocarem a reeleição em risco, porém, esta postura cria um novo problema, a ameaça de perderem os financiadores privados que garantem os recursos materiais nas campanhas (seja financiamento legal ou caixa dois).
É importante destacar que nem mesmo os deputados e senadores da direita se elegem com o discurso de desmonte da previdência, precarização do trabalho, corte de gastos sociais, etc., basta conferir as propagandas eleitorais e veremos que a agenda que encaminham no Congresso não corresponde a aquela apresentada durante a campanha. A direita no Brasil não ganha voto apresentando uma plataforma neoliberal, por isso mesmo deve trair sistematicamente aqueles que o elegem, para contemplar os que lhe financiam.
O dilema de boa parte dos deputados alinhados com o golpe pode ser traduzido da seguinte forma: ou traem o governo e seus financiadores e se protegem da insatisfação dos eleitores, ou se ligam ao destino do governo Temer e aprofundam a traição em relação ao seu eleitorado.
O governo Temer (e o consórcio golpista) não tem forças suficientes para responder por muito mais tempo ao custo político suportado por seus aliados na execução de sua estratégia de guerra relâmpago. A deserção parlamentar e o distanciamento e mudança de tom de atores antes implicados diretamente do golpe (Globo, STF, parte do empresariado) indicam que o peso da investida inicial se decompôs; hora, portanto, de mudar a abordagem e desenhar um esforço de pactuação no pós-Temer.
Elemento # 4 – O limite da blitzrieg golpista II: a perda da vantagem da surpresa
Temer, oito meses após a consumação do golpe, não conta mais com a vantagem da surpresa. Durante todo este período, agiu de maneira bastante primária, se concentrado no uso da maioria no Congresso. Em parte por incapacidade pessoal de acumular força em outros cenários; por outro lado, devido ao forte bloqueio que seus aliados lhe impuseram no acesso a outros meios de viabilidade política diferente da subordinação completa a cobiça da banca e adjacências. Quem não acumular força política perde a que tem.
O governo usou a surpresa e gastou a força que tinha disponível, porém esta abordagem tem eficácia restrita temporalmente, seu funcionamento é constrangido:
– pelas forças populares e de oposição que se curam da primeira “onda de choque” e começam a se reencontrar na tarefa de seu tempo (resumo: o “Fora Temer” pegou e as mobilizações em defesas dos direitos estão oferecendo algum nível de enfrentamento);
– pela perda de aderência social dos setores médios, ganhos no momento do golpe para a tarefa de deslegitimar o governo Dilma, mas que agora se recusam a legitimar o governo golpista, (resumo: ninguém acredita que o governo acabará com a corrupção);
– pela disputa interna no interior do consórcio golpista, que já está publicamente fracionado, cujo atores exibem suas estratégias e movem-se na perspectiva de ocupar o centro do arranjo político no pós-Temer (resumo: Temer era um ator para ser utilizado, desgastado e descartado assim que seu valor de uso fosse consumido).
O trunfo da surpresa já não existe mais para Temer. Os atores do golpe irão descartá-lo na perspectiva de criar uma nova pactuação que garanta a reprodução do que conquistaram até então. Por sua vez as forças populares e democráticas, na medida de suas possibilidades, se arranjam em suas apostas e estilos de enfrentamentos próprios. A base social do golpe, em especial os setores médios e frações de trabalhadores, por razões diferentes dirigem sua atenção para narrativas demagógicas de conteúdo fascista (a exemplo da “onda” Bolsonaro 2018), não tendo razões para preservar qualquer expectativa quanto ao governo. Temer deixou de ser a novidade útil e passou a ser um estorvo.
Elemento # 5 – O labirinto conjuntural
Diante deste quadro, que é produto de uma longa série de movimentações táticas que analisei no texto “As cinco táticas da direita brasileira” em 2015, os atores políticos se movimentam na disputa da sucessão de Temer. A maneira com que este deixará o governo (cassado, por renúncia ou dentro do calendário eleitoral) determina, em grande medida, o fortalecimento ou enfraquecimento de atores implicados no processo sucessório.
Mesmo tendo a instabilidade como matriz geral da conjuntura atual, vale a pena procurar sintetizar, mesmo que de maneira provisória, algumas possibilidades de desfecho.
Possibilidade 1 – Cassação da chapa Dilma/Temer no TSE – Processo patrocinado por Aécio Neves (PSDB) logo após sua derrota nas eleições presidenciais de 2014. Atualmente o PSDB (que junto com o DEM formam o centro dirigente do governo Temer) interpretam que as supostas irregularidades de campanha incidem apenas sobre Dilma e não sobre seu vice à época. A cassação poderá gerar as seguintes situações (hipóteses) e seus respectivos desdobramentos:
Situação 1.1 – A chapa inteira é cassada e tanto Dilma quanto Temer perdem os direitos políticos; é convocada uma eleição indireta, é o congresso que elege um novo presidente.
Desdobramento provável de 1.1: Durante o julgamento do processo, Temer utiliza expedientes de procrastinação, ganha tempo. Caso se confirme a sentença de cassação da chapa, o mesmo lança mão de recursos ao TSE e STF com o mesmo objetivo de adiar o seu afastamento. A instabilidade contínua e Temer assume o papel de bode expiatório do golpe até 2018.
Desdobramentos possíveis de 1.1: Existe a possibilidade de eleição indireta com a indicação de um ator político com o discurso de salvaguardar a institucionalidade, concorrem nesta disputa membros do Judiciário inclusive – nomes que compõem atualmente os presidenciáveis indiretamente: Gilmar Mendes (STF e STE) e Nelson Jobim (ex Ministro da Defesa e ex- ministro do STF); porém ambos declararam à imprensa que são à favor da preservação de Temer no processo em questão. Alerta: corresse o risco de mudança no calendário eleitoral e a ampliação do tempo do mandato indireto, neste caso, sem eleições em 2018.
Desdobramento alternativo conservador de 1.1: Diante da instabilidade da cassação, os partidos realizam um acordo que elege indiretamente um governo de “salvação nacional” como forma de evitar a degradação completa do sistema partidário e estabelecer algum grau de proteção frente às ameaças geradas pela Operação Lava-Jato.
Desdobramento alternativo progressista de 1.1: Se origina das mesmas condições do desdobramento anterior, porém com a possibilidade de um desfecho progressista, por meio de um “governo de emergência”. Teria como objetivo o bloqueio da agenda parlamentar golpista, proteção da Petrobrás, e suspensão da efetivação dos direitos retirados por via política ou judicial consumando a derrota do projeto neoliberal; tal proposta se aproxima daquela defendida pelo Senador Roberto Requião (PMDB/PR). Este desdobramento pode vir em primeiro plano ou como proposta da esquerda frente ao bloqueio da possibilidade de eleições diretas, conforme destacado a seguir.
Desdobramento radical de 1.1: A crise política se acentua levando a uma nova onda de mobilizações sociais. O Congresso e o Judiciário sentem-se obrigados a convergirem na convocação das eleições diretas para presidente, que requer a aprovação de uma PEC no Congresso, de maneira extremamente rápida, para viabilizar as eleições. Como consequência provável, seria modificado o calendário eleitoral, ampliando o mandato tampão.
Situação 1.2 – A ação é julgada procedente, porém com efeitos de perda de direitos políticos para Dilma que é proibida de disputar cargo político por oito anos. Temer se preservaria da cassação e continuaria na presidência.
Desdobramento provável de 1.2: Temer segue desgastado até 2018. A disputa eleitoral acontece dentro do calendário eleitoral com a participação de Lula. O arranjo político da Nova República ganha sobrevida, porém sem estabilidade no médio e longo prazo.
Desdobramento alternativo de 1.2: Temer segue desgastado até 2018. Lula é impedido (seja por prisão ou outro expediente) de ser candidato. Neste caso, o arranjo político da Nova República entra em colapso, novos atores sociais de esquerda e de direita (em especial a fascista) ou lideranças demagógicas (Dória e Luciano Huck) podem ganhar expressão rapidamente.
Situação 1.3 – A ação é julgada procedente, os direitos políticos dos sentenciados não retirados (ao estilo da votação do impedimento de Dilma no Senado). Isso garantiria a possibilidade de afastamento de Temer e sua recondução de forma indireta no Congresso.
Desdobramentos: Os mesmos da situação 1.2, porém tal manobra teria caráter meramente protelatório e não enfrentaria as questões centrais do momento atual.
Possibilidade 2 – A chapa Dilma/Temer não é cassada no TSE – Neste caso, garante a permanência de Temer e seu respectivo desgaste até possíveis eleições em 2018, seguindo o calendário eleitoral determinado atualmente.
As situações e seus respectivos desdobramentos permaneceriam praticamente os mesmo da situação 1.2, descrita acima.
Possibilidade 3 – Parlamentarismo – Propostas defendidas por parte do PSDB (José Serra em especial) e pelo “Centrão” (setor suprapartidário herdeiros do capital político de Eduardo Cunha) pode ganhar a agenda como forma de superar, ao estilo conservador, a Nova República. Neste caso, se fortalece a Congresso, retira poder da Presidência. Pode ocorrer ainda uma reforma política que reduza a quantidade de partidos (proposta de FHC) e estabeleça um outro tipo de polarização partidária, bloqueando o desenvolvimento de partidos de esquerda como PSOL.
Elemento # 6 – Alternativas em disputa
A rejeição ao governo ampliou-se no último mês, em especial a revolta frente à proposta de Reforma da Previdência. Os atos, debates, discussões e vídeos de denúncia se multiplicaram por todo o país, criando um clima de insatisfação ganhou terreno. Neste aspecto, as organizações sociais e políticas tiveram papel destacado. A palavra de ordem “Fora Temer” ganhou sentido prático no chamado “Nenhum direito a menos”. Porém, a força moral dos setores populares deve ser convertida em força material para que cumpra sua finalidade. Neste ponto surgem as bifurcações de estratégias e propósitos.
Caminhou-se até aqui com relativa unidade. Porém surge a questão: “Quem assumirá a liderança os setores anti-golpe na disputa do pós-Temer?”. Outra questão ainda mais relevante seria: “Como os setores anti-golpe disputarão o período pós-Temer?”.
Surgem, portanto, algumas hipóteses, tomando como pressuposto que haverá eleições em 2018 e não correrá mudanças no sistema político.
Hipótese provável relativa à candidatura de Lula: Lula segue elevando o tom até às vésperas das eleições, se confirma como candidato e busca um acordo com setores da burguesia e parte do complexo golpista que está se distanciando de Temer (Renan Calheiros). Setores à esquerda se dividem entre o apoio a Lula e uma candidatura alternativa do PSOL. Seja vitorioso ou derrotado o sistema político se legitima parcialmente, porém a instabilidade ainda permanece como um pano de fundo.
Hipótese alternativa relativa à candidatura de Lula: Lula não compõe com setores golpistas e assume uma posição de esquerda na disputa eleitoral. Atrai os setores progressistas e populares e retira boa parte da capacidade eleitoral do PSOL.
Sobre o PSOL, basicamente são dois polos em disputa que ainda não se configuraram de maneira precisa, porém é possível sintetizar de maneira breve com as seguintes hipóteses:
Hipótese 1 – Lançamento de uma candidatura de demarcação com o PT, tendo como objetivo principal disputar a referência na esquerda. Neste caso será uma campanha de autoconstrução pela esquerda.
Hipótese 2 – Lançamento de uma candidatura de demarcação com o golpismo e o fascismo, tendo como objetivo principal a disputa e agregação dos setores democrático e a ampliação da bancada parlamentar, Neste caso será uma campanha de defesa dos direitos e da democracia, cuja autoconstrução atingirá parcelas sociais populares e médias.
Seja qual for a rota possível para a conjuntura atual, nenhuma delas indicam a superação contundente da forte instabilidade que o golpe provocou no país. Provavelmente após 2018, com ou sem eleições, se abrirá o debate sobre necessidade de Nova Constituinte no Brasil devido ao colapso do arranjo político vigente desde 1988. Uma nova constituinte não é uma questão de escolha, mas um imperativo do processo político, um país não tem viabilidade nacional sem um arranjo de forças que determine a configuração do conflito das classes, seja uma configuração progressista ou conservadora, não é este o ponto. A refundação da República trará a luz do dia os elementos políticos e ideológicos que conformam os projetos de sociedade realmente em disputa atualmente; mas invisíveis, por soterrados que estão, debaixo da grossa superfície de escombros e problemas imediatos.