Congresso prepara perdão bilionário para empresas devedoras
por André Barrocal — publicado 16/05/2017
Anistia beneficia os próprios parlamentares e seus financiadores e é tramada ao mesmo tempo que avançam reformas impopulares
A “Casa do Povo” em Brasília tornou-se um bunker antipovo nos últimos dias. O Congresso tem estado sitiado, grades, viaturas e guardas cercam o prédio, entrar lá não tem sido nada fácil. Quem vence as barreiras e alcança o interior encontra policiais legislativos armados ostensivamente, a controlar a circulação. Tudo para proteger deputados e senadores de pressões contra as reformas trabalhista e da Previdência. O cenário e o que tem acontecido lá dentro mostram que a “Casa do Povo” é na verdade um camarote vip, retrato de uma democracia capturada pelo dinheiro.
Dos 594 parlamentares, 42% são empresários, fazendeiros incluídos, quase o dobro do total de assalariados (22%). O País tem mais mulheres (51%) do que homens (49%), mas elas são só 12% dos legisladores. Situação similar à dos negros, 54% na população e 10% dos congressistas. Eleger-se em 2014 custou fortunas impagáveis para um trabalhador, renda média de 1,7 mil mensais. Um deputado gastou, por baixo, 2 milhões de reais na campanha e um senador, 5 milhões, informa o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), autor de uma radiografia do Parlamento. Uma grana dada quase sempre por empresas, investimento disfarçado de doação.
Com um Legislativo desse perfil, não surpreende o avanço de reformas que farão o brasileiro trabalhar mais horas e anos e ganhar menos salário e aposentadoria, ao mesmo tempo que são votados perdões bilionários para calote tributário de empresa e, pasmem, de congressistas. Nem surpreende a bancada ruralista chantagear o governo para arrancar uma anistia particular de dívidas.
O perdão tributário despontou no embalo de outro daqueles programas de parcelamento de débito empresarial que já viraram rotina. O novo Refis nasceu de uma Medida Provisória assinada pelo presidente Michel Temer em janeiro, a 766. Permite aos caloteiros, tanto os que são cobrados apenas no âmbito administrativo quanto aqueles já processados na Justiça, pagar 20% à vista e dividir o resto em até dez anos. A proposta logo vai a votação no plenário da Câmara e, por obra de uma comissão especial de deputados e senadores, ficou ainda mais generosa, coisa de Madre Teresa de Calcutá. Prazo de até 20 anos para pagar e perdão de 90% a 99% de juros, multas e encargos.
As mudanças na MP, se aprovadas, custarão bilhões ao Erário. Com base em alguns cálculos da Receita Federal, é possível dizer que de cada 6 reais que o governo poderia obter, sobrará apenas 1. Os outros 5 serão embolsados pelos caloteiros. Para o Fisco arrecadar os 8 bilhões de reais pretendidos este ano, seria preciso haver a regularização de 630 bilhões em dívidas, e não mais de uns 100 bilhões. “É um impacto muito grande, violento. O relatório não ficou razoável”, afirma o secretário da Receita, Jorge Rachid.
A comissão que aprovou o relatório é cheia de legisladores em causa própria. Dos 50 membros, entre titulares e reservas, 22 estão com o nome na Dívida Ativa da União, cobrados na Justiça. Devem 212 milhões de reais. Dois personagens merecem destaque. Os deputados Newton Cardoso Jr., mineiro do PMDB, e Alfredo Kaefer, paranaense do nanico PSL.
Cardoso Jr. foi o relator da MP, responsável por dar a cara final ao texto prestes a ir a plenário. É o caloteiro medalha de prata na comissão, 53 milhões de reais em débitos vinculados à sua pessoa física ou a empresas das quais é diretor ou presidente. Um de seus financiadores de campanha, o Banco Mercantil do Brasil, deve 38 milhões. Kaefer foi o campeão de propostas de alteração da MP. Das 376 emendas apresentadas, 44 eram dele. Queria prazos maiores e perdão de multas e juros, entre outras. É o devedor medalha de bronze, 32 milhões.
Os empresários Cardoso Jr. e Kaefer são doutores em rolos tributários. O peemedebista, que na época da montagem da equipe de Temer, em maio de 2016, anunciou-se no Facebook como ministro da Defesa e depois ficou a ver navios, é réu em duas ações penais no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma delas, a 983, por crime contra a ordem tributária. O jovem de 38 anos, sobrenome ilustre e suspeito em Minas, é alvo ainda de quatro inquéritos por sonegação fiscal e crime contra a ordem tributária, entre outras razões. A Companhia Siderúrgica Pitangui, da qual é dirigente, responde por 49 milhões dos 53 milhões de suas dívidas e anda encrencada no Judiciário.
O experiente Kaefer, 62 anos, é um caso interessante. O Ministério Público desconfia que fez fortuna com calote em credores. Ele reelegeu-se em 2014, pelo PSDB, como o deputado mais rico do Brasil, 108 milhões de reais em bens declarados à Justiça. Hoje é réu no STF em uma ação penal aberta durante a campanha. O MP acusa-o de esconder do Banco Central que uma instituição que ele comandava em 2000, a Sul Financeira, tinha passivo de 72 milhões de reais e patrimônio de 4,5 milhões, uma situação a justificar uma intervenção do BC.
Os empréstimos omitidos teriam mascarado encrencas financeiras do grupo empresarial do deputado, o Diplomata. Logo após a campanha, uma juíza decretou a falência do grupo, decisão recém-anulada pelo Superior Tribunal de Justiça. Kaefer é alvo de mais cinco inquéritos no STF, por fraude contra credores e crime contra a ordem tributária. Compreensível a “alegria” expressa por ele na comissão no dia da votação. “Posso dizer de cadeira, de letra” que essa proposta atende “o anseio de milhares de empresas”.
A votação de 3 de maio teve uma única dose de emoção. O deputado Pauderney Avelino, do DEM do Amazonas, tentou reverter a aprovação. Estava inconformado com a exclusão, pelo relator, de um mimo tributário existente há anos para a Coca-Cola na Zona Franca de Manaus. Alegou que ninguém conhecia o relatório previamente, daí que a votação estava sub judice. O presidente da comissão, senador Otto Alencar, do PSD da Bahia, perguntou em nome de quem Avelino falava. Era do governo? “Da moralidade”, foi a resposta. “Da moralidade?”, espantou-se Alencar.
Numa daquelas famosas conversas com figurões do PMDB sobre o enterro da Operação Lava Jato em consequência do impeachment de Dilma Rousseff, Sérgio Machado, que tinha gravado secretamente as conversas, comentou: “Aquele cara, Pauderney, agora virou herói. Um cara mais corrupto que aquele não existe, Pauderney Avelino”. Otto Alencar não deu bola para o esperneio do moralista sem moral e encerrou a sessão.
Naquele instante, uma CPI do Senado a investigar maracutaias na Previdência ouvia o presidente do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, Achilles Frias. Esses procuradores são os responsáveis por cobrar dívidas tributárias na Justiça. Frias foi duro contra a comissão dos caloteiros. “É grave o que ocorreu hoje”, comentou. “Em um país sério, um devedor ou um grande devedor não votaria uma medida dessa sendo parlamentar.” Carinho especial em Cardoso Jr: “É um grande devedor, e ele não só votou como foi o relator, ou seja, um grande devedor acabou de apresentar um relatório para anistiar as suas próprias dívidas”. Enquanto isso, disse, “o trabalhador ou assalariado não tem nem como parcelar, porque ele não tem nem como dever, é descontado na fonte”.
O órgão federal da carreira de Frias, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), foi quem elaborou a lista dos congressistas caloteiros. De cada três parlamentares, dois estão com o nome na Dívida Ativa da União. Um total de 337, com débitos de quase 3 bilhões de reais. A lista nasceu de um pedido da Folha de S.Paulo, feito com base na Lei de Acesso à Informação (LAI). A PGFN publicou-a na internet um dia após a votação na comissão. Deixou-a na web por meia hora e então a retirou, por haver imprecisões. Dizia que voltaria a divulgar após correções, mas a pressão do Congresso sobre o Palácio do Planalto foi tanta que a ideia foi abortada. CartaCapital solicitou a lista corrigida, com base na LAI, e ainda espera resposta.
O Planalto amarelou devido à reforma da Previdência, proposta que alçou à condição de Santo Graal e agora o deixa à mercê da chantagem dos aliados congressuais. “Estão enfiando a faca no governo”, diz um deputado do PMDB sobre o que se tem visto em Brasília, uma desavergonhada barganha de cargos e dinheiro para obras (emendas parlamentares) em troca de votos pró-reforma. No caso do novo Refis, a área econômica até que tenta resistir à pressão.
Em debate no Senado na terça-feira 9 sobre o sistema tributário, Jorge Rachid, o chefe do Fisco, foi claro: a criação periódica de programas de rolagem de dívidas é um convite ao calote, especialmente por parte de grandes empresas. Segundo ele, nos últimos anos, quando a expectativa de parcelamentos e perdões entrou no horizonte empresarial, a Receita deixou de arrecadar uns 18 bilhões de reais anuais.
O que acontece, diz Achilles Frias, é que a rotina de rolagem tornou o calote tributário uma opção lucrativa para o empresariado, que embolsa a grana dos impostos para fazer negócios. A monografia “Análise Histórica sobre o Refis”, concluída no ano passado na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), dá uma pista de como o calote é lucrativo.
O autor da monografia, Roberto Alexandre do Amaral, examinou todos os Refis, uma história iniciada em 2000, no governo Fernando Henrique Cardoso. Ele pegou o caso concreto de uma empresa devedora de 30 milhões de reais em dezembro de 2014. Com base nas regras do último Refis, instituído em 2009 e reaberto em 2013, a empresa poderia pagar 127 mil reais mensais por 15 anos para regularizar a situação e, graças aos perdões de juros e multas, lucrar 9 milhões. Um “excelente negócio”, anotou o autor.
Já agraciados no Refis de Temer juntamente com o empresariado, os ruralistas querem agora um presente só para eles, para quitar uma fatura de 8 bilhões a 10 bilhões de reais que, com juros e multas, chega a 22 bilhões. No fim de março, o Supremo julgou uma ação antiga a tratar de uma lei de 2001 que taxa em 2,3% as vendas dos fazendeiros. A taxação, chamada de Funrural, serve para financiar a seguridade social e a aposentadoria de camponeses. Os fazendeiros não pagam, recorrem à Justiça, mas agora perderam no STF. E enlouqueceram. Alguns de seus representantes no Congresso foram a Temer, no fim de abril, cobrar uma solução, já no forno.
Em 3 de maio, mesmo dia da aprovação do novo Refis na comissão dos caloteiros, puseram 500 produtores no Senado, em um evento destinado a fazer barulho e chantagem. “O Congresso é nossa última esperança”, dizia o líder da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Nabhan Garcia. “O Funrural foi mais um dos agravantes, não aguentamos mais perseguição de ordem trabalhista, de ordem ambiental, de ordem fundiária.”
O pessoal não aceita quitar a dívida acumulada no Funrural, no máximo pagar daqui em diante. Ex-líder da UDR, o senador Ronaldo Caiado, do DEM de Goiás, propôs uma lei com perdão total da dívida. E desafiou o Planalto: “Para o governo entender: a classe rural tem maioria nas duas casas, porque é suprapartidária”.
Como foi que a democracia no Brasil acabou dominada pelo empresariado, seja urbano, seja rural? Obra do nosso sistema eleitoral, sem igual no mundo, segundo o cientista político Bruno Reis, da UFMG, um dos quatro autores da pesquisa “Dinheiro e política: a influência do poder econômico no Congresso Nacional”, em fase de conclusão. O País, afirma, tem poucas empresas doadoras de campanha, pois a economia é oligopolizada, e muitos candidatos em colégios eleitorais grandes. Como a oferta de financiamento é pequena e a disputa por verba, muita, o parlamentar fica refém do doador. Ou então é rico e paga a campanha do bolso.
“Montamos uma plutocracia, os grandes financiadores ditam o jogo, o poder econômico capturou o sistema de representação política”, diz Reis. Eis a razão para a greve geral e a raquítica popularidade de Temer não terem sido capazes até aqui de levar ao enterro da votação das reformas trabalhista e da Previdência.
Deputado no sexto mandato seguido, presidente da Câmara em 2007 e 2008, Arlindo Chinaglia, do PT de São Paulo, não tem dúvidas. Há enorme influência do poder econômico no Congresso. A doação empresarial, mesmo que não “compre” o parlamentar, cria no mínimo um acesso facilitado ao patrocinar no Legislativo. “Toda vez que houver uma votação capital versus trabalho, o capital vai ganhar”, diz.
A próxima dessas batalhas será dia 24, a reforma da Previdência no plenário da Câmara. Vários movimentos sociais prometem ocupar Brasília para pressionar contra. Terão de gritar bem alto se quiserem se fazer ouvir pelo camarote vip.
Fonte: Site Carta Capital