Pesquisa mostra como racismo se perpetua nas estruturas do poder
Com foco nas relações de trabalho, estudo verifica presença da discriminação em diferentes instâncias do Estado.
Para pesquisador, o racismo está na essência da sociedade e funciona como uma espécie de opressão naturalizada no inconsciente das pessoas. Foto: The Photographer/Wikimedia Commons
A reportagem é de Rafael Castino e publicada por Jornal da Usp, 18-09-2017.
Ao escolher o racismo como tema de doutorado, a primeira inquietação de Humberto Bersani se deu ao perceber que, na área do Direito, a maior parte das pesquisas olha para a atuação dos sistemas de justiça, mais especificamente, o sistema penal. Além disso, a maioria delas trata o racismo exclusivamente como problema institucional – sendo que, no Brasil, o preconceito não se encontra apenas nas instituições, fazendo parte da própria estruturação social. Essa foi a lacuna acadêmica que seu trabalho procurou diminuir.
“A discriminação não vem apenas das instituições, ela é um instrumento estrutural, pois opera também no inconsciente. É uma forma de opressão ‘naturalizada’ e que vai perpassar todos os outros elementos sociais”, explica Bersani. “Se fizermos qualquer recorte racial na população brasileira, iremos identificar o racismo ali presente”, pontua.
O primeiro passo da pesquisa, conduzida na Faculdade de Direito (FD) da USP sob orientação do professor Dennis de Oliveira, consistiu no estudo de quais eram os elementos do tipo de racismo mencionado.
Para isso, Bersani usou como base conceitos de quatro teóricos: Jacob Borenstein e sua obra O Escravismo Colonial: Modo de Produção; Clóvis Moura, com a Dialética Radical do Brasil Negro; Caio Prado Júnior, usando o conceito de economia colonial como sentido da colonização; e Nelson Werneck Sodré, com o livro Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil.
A partir dessas leituras, ele propôs um novo conceito de racismo estrutural, mais aprofundado. Segundo a tese, entende-se que tal preconceito “transcende o âmbito institucional, pois está na essência da sociedade e, assim, é apropriado para manter, reproduzir e recriar desigualdades e privilégios, revelando-se como mecanismo colocado para perpetuar o atual estado das coisas”.
Com uma nova definição para um problema que vem se perpetuando, Bersaniconcentrou-se no estudo do racismo dentro de estruturas do poder no Brasil. Primeiro, analisou a maneira como o ordenamento jurídico vem acompanhando a questão estudada, partindo das primeiras leis e perpassando os termos insuficientes de proteção contra o racismo e seu combate. Em um segundo período, a pesquisa teve como foco o chamado “Estado branco” — definido como uma instituição que se alimenta do racismo e traz o preconceito intrínseco já na sua formulação.
“Nós não temos representatividade, os negros são sub-representados em todas as instituições. Conseguimos constatar tal injustiça quando percebemos a ideologia presente nas políticas públicas mantidas pelo Estado.”
O estudo abrangeu diversos âmbitos da realidade do País para confirmar suas hipóteses. Foram avaliadas a desigualdade educacional, a falta de investimento em um ensino superior público de qualidade e a ineficiência da lei 10.639/03 — que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira.
Mercado de trabalho e justiça
Na concepção de Bersani, foi necessário passar por todo esse “percurso estatal” para conseguir observar verdadeiramente como o racismo se revela nas relações de trabalho. Com base em estudos anteriores, o pesquisador estipulou quatro categorias para avaliação do preconceito no ambiente empresarial: informalidade, precarização, desemprego e desigualdade salarial.
Ao olhar atentamente cada um desses eixos, identifica-se uma exclusão dos negros em relação às instituições. E quando se trata de mulheres afrodescendentes, há uma grande potencialização desta tal exclusão.
“Avaliamos também o diálogo que a justiça do trabalho estabelece quanto às relações profissionais. Há indícios de um não reconhecimento do racismo quando este é denunciado. Tal tratamento no campo penal também se dá a partir do encarceramento de negros, negras e do extermínio da juventude afro.”O trabalho incluiu ainda um levantamento que analisou 1.044 decisões proferidas por 24 Tribunais Regionais do Trabalho e outras tomadas pelo Tribunal Superior. A partir de palavras-chave, verificou-se o conteúdo das instâncias, buscando constatar quantas destas falavam em racismo ou discriminação racial. Na visão de Bersani, não foi surpreendente o fato de o preconceito não ser reconhecido, já que o Judiciário e a jurisprudência trabalhista resistem em caracterizar tais práticas criminosas.
A parte final da tese propõe uma reflexão sobre o limite de atuação do Estado no combate ao racismo estrutural e, principalmente, se este consegue superar a discriminação. Após o levantamento, apontam-se medidas que as instituições podem tomar neste sentido.
Ao tratar a questão utilizando o conceito de direito à desestratificação, o pesquisador sugere, por exemplo, a abertura de cargos em nichos, com o intuito de permitir o acesso proporcional aos espaços sociais. “De certa forma, estaríamos democratizando as instituições”, avalia Bersani. “Com a desestratificação conseguiríamos modificar a participação de negros nesses espaços do Estado e em outros espaços sociais, como já fazem as cotas universitárias”, diz. Para ele, entretanto, essa quebra nas divisões, por si só, não acabaria com o racismo, sendo apenas “um limite do Estado, do direito, na luta contra o preconceito”.
Fonte: Jornal da USP e IHU on Line