A desigualdade já se reflete no útero
Na Espanha, percentual de bebês com baixo peso ao nascer aumentou 18% entre os filhos das mulheres mais pobres durante a crise
Reportagem de MANUEL ANSEDE para o EL PAÍS
As desigualdades sociais estão presentes até mesmo quando o bebê ainda está no útero da mãe – eventualmente de maneira dramática. Na Espanha, a crise econômica aumentou em mais de 18% o percentual de bebês com baixo peso ao nascer entre os filhos de parturientes “donas de casa”, um rótulo que costuma esconder predominantemente mulheres desempregadas, segundo explica o antropólogo Carlos Varea, coautor desse estudo.
O baixo peso ao nascer – menos de 2.500 gramas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) – é um dos indicadores mais utilizados na saúde pública, pois esse problema pode afetar a capacidade mental e inclusive a viabilidade do recém-nascido. A OMS recorda que o baixo peso ao nascer também está vinculado a um maior risco de sofrer de algumas doenças ao longo da vida, como diabetes e patologias cardiovasculares. Pode ser uma sentença irreversível para um bebê.Um peso inferior a 2.500 gramas ao nascer pode afetar a capacidade mental e inclusive a viabilidade do recém-nascido.
O novo trabalho analisou quase 1,8 milhão de partos simples de mães nascidas na Espanha, ocorridos entre 2007 e 2015. Os dados confirmam que a recessão econômica na prática esterilizou muitas espanholas pobres, “intensificando a representação de mulheres com melhor posição socioeconômica e limitando as oportunidades de reprodução das mulheres social e economicamente mais vulneráveis”, segundo o estudo, a ser publicado na revista da Sociedade Espanhola de Nutrição Parenteral e Enteral.
“O aumento das desigualdades alterou o perfil das mães”, explica Varea, pesquisador da Universidade Autônoma de Madri. As mulheres denominadas “profissionais”, com trabalhos muito qualificados, como uma engenheira ou uma arquiteta, passaram de representar quase 21% das mães espanholas em 2007 para quase 32% em 2013, seu auge durante a crise. Enquanto isso, aquelas classificadas como donas de casa caíam de quase 20% em 2007 para 14,5% em 2015. “Se você soma as administrativas às profissionais, elas já constituem mais de metade das mães espanholas. As mulheres com menos estudos são as que se retiram da busca pela maternidade”, afirma o antropólogo. Além disso, a idade da maternidade subiu. Em 2015, 44% das mães tinham 35 anos ou mais. Em 2007, esse percentual mal superava 31%.
O estudo só analisa filhos de mães nascidas na Espanha, já que, em geral, “as mães dos três principais coletivos imigrantes (da América Latina, Magreb e Europa Oriental) têm estilos de vida e hábitos nutricionais muito diferentes, assim como pautas reprodutivas próprias e que estão associadas a diferenças significativas no resultado da gestação”, conforme explicam os autores, entre os quais se encontram a epidemiologista Sol Juárez, do Instituto Karolinska (Suécia), e o antropólogo Barry Bogin, da Universidade do Loughborough (Reino Unido).
A redução da fertilidade é uma das consequências mais imediatas da crise econômica espanhola desde 2008, apontam os investigadores. Segundo eles, contribuem para essa queda “essencialmente as mulheres espanholas em pior situação socioeconômica e igualmente as residentes estrangeiras, passando da sua máxima contribuição, de 20,7% dos nascidos espanhóis em 2008, para 17,6% em 2015”.
Varea mostra um slide, que ele costuma apresentar em suas palestras, com capas do EL PAÍS publicadas ao longo de 2008. Algumas das manchetes, ocupando toda a largura da página, diziam: “O desastre do desemprego asfixia a Espanha”, “Ministério do Trabalho assume que em um ano haverá 375.000 desempregados mais”, “A Espanha escorrega para a recessão”, “O pânico afunda as Bolsas”, “Espanha destrói empregos pela primeira vez desde a recessão de 1993”. Os cidadãos “tomavam o café da manhã diariamente com estas notícias”, observa o investigador. Essa “ansiedade”, somada a uma alimentação inadequada ou insuficiente, traduziu-se em “um maior estresse materno, com um possível aumento no consumo de álcool e tabaco”, raciocina Varea.
O estudo constata que as diferenças sociais aumentaram durante a crise econômica, e que os recém-nascidos pagaram parte do pato. Em 2007, 5,6% dos bebês de mães com trabalhos altamente qualificados tinham baixo peso ao nascer, um percentual que subiu para 6,2% em 2015 (alta de 10,7%). Enquanto isso, a incidência de bebês com baixo peso nascidos das donas de casa foi de 7,6% para 9% do total desse grupo (um aumento de 18%).
A desigualdade de classes se observa ainda mais nitidamente quando se analisa o nível de escolaridade das mães. O percentual de crianças com baixo peso ao nascer passou de 5,5% para 6,1% entre os filhos de mães com estudos universitários. Em mulheres com estudos primários, subiu de 8,9% para 9,6%. “Algumas categorias de mães espanholas têm prevalências de baixo peso ao nascer similares às de países de renda média e baixa”, alerta Varea, que cita percentagens médias de 11% na África oriental e meridional, segundo as estatísticas da OMS.
Um segundo estudo, recém-publicado na revista especializada European Journal of Public Health, confirma a tendência ao baixo peso. O trabalho, encabeçado pelas epidemiologistas Laia Palència e Glòria Pérez, detectou um aumento de 4% na proporção de bebês “pequenos para sua idade gestacional”. O salto aparece entre o período de crise – que elas consideram ser de 2009 a 2013 – em comparação aos sete anos anteriores. Esse indicador, diferentemente do baixo peso ao nascer, depende da duração da gravidez. Estaria estabelecido em 2.816 gramas para meninas e 2.929 para meninos em uma gestação típica de 40 semanas. “O baixo peso ao nascer [menos de 2.500 gramas] não é o melhor indicador para conhecer a saúde neonatal, já que pode haver baixo peso nos nascimentos por serem bebês nascidos prematuros, mas é o peso que lhes corresponde”, opina Pérez.
Em 2008, ano em que segundo as autoras ainda não se notavam os verdadeiros efeitos da crise nos partos, quase 9% dos 415.000 nascimentos estudados apresentavam bebês pequenos para sua idade gestacional. No ano seguinte, essa proporção “aumenta de repente em 4% e se estabiliza”, conforme relata Palència, colega de Pérez na Agência de Saúde Pública de Barcelona. “As desigualdades sociais são evitáveis e injustas, e colocá-las sobre a mesa e fazer políticas para reduzi-las é uma questão de justiça social”, argumenta.
Fonte: Jornal El País
Revista destaca risco do Brasil voltar ao Mapa da Fome
Relatório produzido pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO/ONU) adverte que o Brasil corre o risco de retornar a essa lista nada honrosa.
Cícera João da Silva tem medo de quase nada nesta vida. Aos 52 anos, lida com o roçado desde que se entende por gente — primeiro, ajudando o pai com a enxada na plantação; depois, cultivando a terra noite e dia para criar os três filhos de um casamento que acabou ela nem lembra quando. Hoje, morando sozinha na casa de taipa com rachaduras na parede onde pendura os retratos da família, não se assusta nem mesmo com os ladrões, que agora intimidam a região e outro dia lhe roubaram as galinhas que criava para vender na feira. Mas Dona Ciça, como é chamada pelos vizinhos de Cachoeira de Pedra D´água, comunidade da pequena Massaranduba, no interior da Paraíba, tem medo da fome.
Diz que vai trabalhar enquanto tiver forças e é justamente limpando a roça para o plantio do milho, da fava, do feijão, à espera de um bom inverno, que a reportagem da Radis encontra a agricultora, sob o sol escaldante do meio-dia, em uma quinta-feira de fevereiro. Para sobreviver, além de plantar e de manter a fé “em Deus e Nossa Senhora”, ela conta com os 100 reais que recebe mensalmente do Bolsa Família, programa de transferência de renda do governo federal voltado para quem vive em situação de vulnerabilidade e de extrema pobreza no país. É com esse recurso que Dona Ciça paga a luz, em torno de 22 reais por mês, e o gás de cozinha que, somente entre agosto e dezembro de 2017, teve seis aumentos consecutivos. Ainda ajuda os filhos e os seis netos como pode. Com o que sobra, alimenta-se. “O que dá eu compro; o que não dá, eu não compro”, revela. Naquele dia, ia almoçar feijão.
A vida já esteve melhor para Dona Ciça e pelo menos outros 2,5 milhões de brasileiros que podem ter cruzado de volta a linha da pobreza. Apenas três anos após deixar de figurar entre os países que integram o Mapa da Fome — relatório produzido pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO/ONU) —, o Brasil corre o risco de retornar a essa lista nada honrosa. A advertência feita em dezembro pelo diretor geral da FAO, o brasileiro José Graziano reforça o alerta disparado seis meses antes por um grupo de 20 entidades da sociedade civil brasileira que divulgaram um documento apontando na mesma direção. Intitulado Relatório Luz, o estudo indica a iminência de o Brasil voltar ao mapa, um resultado preocupante diante dos compromissos de erradicar a pobreza e eliminar a fome, assumidos como parte dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a serem cumpridos até 2030.
Que fique claro, o Mapa da Fome é um indicador elaborado pela FAO que, desde 1990, periodicamente, combina dados e analisa a situação de segurança alimentar da população mundial, fazendo projeções e traçando diagnósticos nos diferentes países e regiões do globo. Estar incluído no mapa significa ter parte considerável da população em situação de insegurança alimentar, ingerindo uma quantidade diária de calorias inferior ao recomendado. O Brasil saiu do mapa em 2014. Isso não significa que a fome havia acabado, mas que pela primeira vez em sua história o país teve menos de 5% de sua população subalimentada. Naquele ano, como constatado pela FAO, esse índice foi de 3%. Parecia que a fome finalmente tinha deixado de ser tratada como fenômeno natural. E o país de Josué de Castro e Herbert de Souza, o Betinho — ativistas que sempre deram à fome um estatuto político e econômico —, comemorou o resultado.
“Especialmente a partir do Programa Fome Zero, a questão da fome passa a ter relevância na agenda política no Brasil. Por isso houve melhora dos índices de insegurança alimentar e o país saiu do Mapa da Fome”, aponta a antropóloga Maria Emília Pacheco assessora nacional da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Criado em 2003 durante o primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Fome Zero articulou políticas emergenciais de combate à fome com políticas públicas estruturais. Segundo a ONU, entre 2003 e 2010, 24 milhões de brasileiros deixaram a linha da extrema pobreza. Ainda de acordo com os indicadores, de 2002 a 2013, a população de brasileiros considerados em situação de subalimentação caiu em 82%.
Em entrevista à Radis, Maria Emília recorda que, na crise global de 2008, debates realizados no âmbito do Consea avaliaram que os impactos no Brasil vinham sendo atenuados graças a medidas como a ampliação da produção apoiada em políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para a agricultura familiar, responsável por cerca de 70% dos alimentos consumidos no país. A antropóloga se refere à política de crédito e programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e o Programa Água para Todos no semiárido. “Essas medidas foram combinadas com a oferta de emprego, recomposição do salário mínimo, programa de transferência de renda e garantia de direitos adquiridos da previdência social”, acrescenta.
Agora, o velho fantasma volta a assustar. “A fome está muito associada à pobreza extrema, e temos preocupação sobre políticas de restrições orçamentárias que estão sendo implementadas”, afirmou o economista Francisco Menezes, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), em entrevista ao Nexo Jornal, durante apresentação do “Relatório Luz”, em julho de 2017. Ele se referia a medidas como a Emenda Constitucional 55, que congela os gastos públicos por 20 anos, e cortes em programas como o Bolsa Família, que teve 1,1 milhão de benefícios cancelados ou bloqueados pelo governo. Os retrocessos nas políticas públicas também foram apontados por todos os especialistas ouvidos por Radis como ameaças na luta contra a fome.
Para José Graziano, em um cenário de crise econômica e com condições adversas com o aumento dos índices de desemprego, por exemplo, torna-se essencial a manutenção dos investimentos sociais. “O que se noticia, porém, são cortes nos orçamentos dos programas sociais e das redes de proteção social”, lamenta o diretor-geral da FAO. Além do enxugamento no Bolsa Família, que deixa Dona Ciça apreensiva a cada vez que se dirige à casa lotérica em busca do benefício, outros programas perderam orçamento. O PAA, por exemplo, que favorece a aquisição direta de produtos de agricultores familiares ou de suas organizações para distribuição em hospitais, escolas e presídios, sofreu uma redução orçamentária de 40% no último ano, diminuindo de 91,7 mil para 41,3 mil o número de pessoas atendidas, segundo dados da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA Brasil).
Fonte: Revista Radis. Reportagem: Ana Cláudia Peres.