IHU: entrevista sobre políticas públicas com Rudá Ricci
Desde os anos 1990, a formulação de políticas públicas no Brasil e no mundo deixou de ser fundamentada em uma concepção pública de Estado e passou a ser elaborada a partir de uma concepção corporativa, e é isso que explica, em parte, a crise da representatividade política em vários países e a dificuldade dos Estados em elaborar políticas que satisfaçam as necessidades da população. “Aceleradamente fomos trazendo todos os modelos de empresa privada, inclusive os interesses das empresas, para dentro do Estado e dos partidos políticos, de tal maneira que hoje não tem diferença nenhuma entre as propostas de condução do Estado do PT para o PSDB, para o MDB e, inclusive, para o PSL”, afirma Rudá Ricci à IHU On-Line, na entrevista concedida por telefone. Segundo ele, “todos os governos se ajoelharam para o mercado no último período. Estamos quebrando a noção de política pública e o que estamos chamando de política pública é, na verdade, política de incentivo aos interesses privados”.
Ao avaliar a formulação, a implantação e a gestão das políticas públicas no Brasil nas últimas décadas, Ricci é categórico: “O que precisamos entender é que se forjou uma nova estrutura da República brasileira que se apoia muito no esvaziamento técnico das prefeituras e, portanto, na sua dependência em relação aos governos estaduais e federais, e no papel cartorial do deputado federal. Sem mudar isso, sem uma reforma em que se consiga restabelecer o papel dos municípios como ente federativo autônomo, com recurso e capacidade de elaboração de políticas e com a reorganização, inclusive regional, das prefeituras, como existe na Itália, não mudaremos essa lógica”. Ele explica que na última década e meia, em especial nos oito anos do governo Lula, houve um processo de “esvaziamento do repasse dos recursos do governo federal para os municípios, obrigando-os a fazer convênios com as agências estatais federais, como a Caixa Econômica Federal, pelo Minha Casa Minha Vida, o Ministério do Esporte, pelo Programa Segundo Tempo, o Ministério da Educação e assim por diante”. A consequência desse processo, diz, é que os “municípios como entes federativos autônomos” para formular políticas públicas, “na prática, quase não existem mais e nos aproximamos do modelo chileno, porque no Chile o orçamento é unicista, isto é, somente federal”.
Essa forma de administrar o Estado e formular as políticas públicas, pontua, tem acentuado a crise de representação política, que se manifesta na alternância entre governos de direita e esquerda. “Essa coisa de que o mundo está indo para a direita é uma leitura espetaculosa sem uma base analítica muito densa. O que está acontecendo é uma crise de representação: há uma intenção dos cidadãos do mundo todo em quebrar o monolitismo político do que chamamos de democracia, e os representantes oficiais políticos e a estrutura de Estado rejeitam esse tipo de descentralização”, assegura.
Rudá Ricci estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU no dia 26-03-2019, participando do Ciclo de Debates Políticas Públicas no atual contexto brasileiro. Desafios e possibilidades para a democracia, onde ministrará a palestra intitulada Políticas públicas, gestão e participação, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no campus São Leopoldo.
Rudá Ricci durante entrevista à IHU On-Line, em 2018, na Unisinos Porto Alegre (Foto:Ricardo Machado - IHU)
Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É presidente do Instituto Cultiva, cujo programa Comunidades Educadoras que criou acaba de receber distinção da Unesco como programa educacional mais exitoso do Brasil, figurando entre 16 experiências exitosas do mundo. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), e Conservadorismo político em Minas Gerais: os oito anos de governo Aécio Neves (Editora Letramento, 2017), entre outros.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Qual é o melhor modo de entender o significado dos termos políticas públicas, gestão e participação?
Rudá Ricci — A palavra política significa organização social. Ela vem de polis, cidade, e, portanto, significa uma preocupação com essa vida social. Quem não é político, para os gregos, é idiota e idiota significa aquele que olha só para si. Então, a primeira ideia de política remete para uma questão pública, de todos. A palavra pública reforça essa ideia, ou seja, política pública significa um olhar para a organização social onde todos vivem, isso é política pública. Evidentemente que com esse sentido a grande referência de política pública é o Estado, mas não só: também contribuem as organizações sociais de representação, desde que dialoguem entre si. Nenhuma política pública, portanto, pode estar voltada para os interesses privados, porque ela deixa de ser pública.
Sobre participação há uma discussão muito importante ao longo do século XX, em especial a partir da Segunda Guerra Mundial. Um dos autores que é referência nessa temática é Sherry Arnstein, que sugere uma diferença entre consulta — que é o que se faz muito no Brasil — e participação. Consulta é quando se interpela a população sobre o que o governo está fazendo ou o que deveria fazer, mas, nesse caso, quem toma a decisão sobre o resultado da consulta é quem pergunta. Ou seja, ao cidadão caberia uma postura quase que passiva de só responder à pergunta. Participação é muito mais do que isso: participação significa o envolvimento do beneficiado ou dos cidadãos na elaboração do projeto que vai responder a uma demanda social e à condução do projeto, além do monitoramento da implantação. Então, quando falamos em participação ao avaliar uma política pública, não vale a pena avaliar as metas que foram atingidas; é isso que os governos brasileiros fazem desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Embora todos os governos falassem em participação, eles apenas faziam avaliação de metas e resultados que teriam atingido ou não. A questão é: quem tomou a decisão sobre a meta? Se a decisão foi tomada pelo próprio governo, não houve participação.
Qual deveria ser, então, o indicador ou o método de avaliação numa gestão pública participativa? Deveria ser o impacto, ou seja, contatar a população atendida — o melhor é que essa população esteja organizada num conselho de coordenação daquele programa que foi desenvolvido — e a partir desse contato avaliar o que era a vida deles antes da implantação de tal programa ou tal ação e o que virou depois disso. Comparando o antes com o depois, aí sim se avalia, inclusive, se a meta decidida era correta ou se foi uma decisão de gabinete.
Sobre gestão, temos vários modelos de gestão, em especial pública, gestão do Estado. Os modelos autocráticos, burocráticos e tecnocráticos são aqueles que conhecemos muito nos anos 1950 e 1970, em que o órgão técnico, mais até do que o dirigente político que governa aquele órgão, através de um discurso muito específico e especializado, decide tudo: as metas, como tem que ser implantado, com qual velocidade e tudo mais. É como se extinguisse a política do dia a dia da condução do Estado.
O outro extremo de gestão é o que popularmente no Brasil se chama de gestão participativa, que é o mesmo que alguns autores chamam de democracia deliberativa. Trata-se de uma democracia em que o cidadão delibera sobre o que tem que fazer, por isso tem a ver com o conceito de participação que falei agora. John Keane, um autor australiano, escreveu recentemente quase uma bíblia sobre a crise democrática contemporânea, sugerindo que existe um novo conceito de democracia, que é a democracia monitória, de monitorar. Ele cita vários órgãos da sociedade civil e entidades que são criadas depois de uma eleição para fiscalizar o governo ou criar equipes técnicas, coordenadas pela sociedade civil, para dialogar com o governo sobre políticas que ele vem desenvolvendo ou que deveria desenvolver. Por isso que se chama de democracia monitória. Vemos que existem várias formas de gestão, mas a gestão participativa é a mais complexa porque, de fato, precisa criar instâncias que administrem a burocracia pública: em vez de os tecnocratas dominarem a ação do Estado, eles passam a se subordinar ao interesse, à cultura e aos valores da sociedade.
IHU On-Line — O senhor já disse que as políticas públicas no Brasil passaram a ser menos públicas e mais corporativas. Pode nos explicar como se dava a elaboração das políticas numa concepção mais pública e como se dá a elaboração das políticas numa concepção mais corporativa, e explicar igualmente por que e como essa mudança ocorreu?
Rudá Ricci — Uma política mais pública, de Estado ou da sociedade como um todo, se dava de algumas maneiras e uma delas era através da representação formal, ou seja, para que ela se tornasse pública, aqueles que elaborariam e conduziriam a política deveriam ter mandato popular. No caso brasileiro, esse mandato popular só era questionado em processo eleitoral, mas em outros países, como nos Estados Unidos, em especial no estado da Califórnia, existem leis em que, por exemplo, na metade do mandato do governador, se os cidadãos discordarem do que ele está fazendo, podem pedir uma petição — essa proposta está organizada numa lei chamada Recall nos EUA, e no Brasil se chama revogação do mandato eletivo, que é uma proposta de lei espelhada na Califórnia. Assim os cidadãos, num percentual dos eleitores daquele estado, podem solicitar uma confirmação da eleição daquele governador, e o tribunal eleitoral é obrigado a fazer uma nova votação só de confirmação daquele governador. Se a maioria que for votar disser que aquele governador não está cumprindo o desejo dos eleitores, ele perde o mandato. Isso ocorreu recentemente na Califórnia — por isso estou citando — e foi o que possibilitou a eleição de Arnold Schwarzenegger. Isso é política pública tanto pelo voto quanto pelo mandato popular, como pela revogação ou confirmação de que aquele eleito está cumprindo o desejo do eleitor. A partir daí o que se espera é que o eleito, como tem um mandato popular, deve fazer aquilo que os eleitores decidiram ao votarem nele; o governador não pode ter uma postura autocrática.
Crise econômica, mudança tecnológica e fragmentação social
A partir dos anos 1990, em função da crise econômica e das mudanças tecnológicas que vinham ocorrendo no mundo através da robótica e da automação da produção, que acelerou demais a criação de novos produtos e mercadorias — para termos uma ideia, a média de criação do início do século XX até o final dos anos 1970 era de um produto a cada dez anos por setor, e a partir dos anos 1990 saltamos para um produto novo por setor a cada seis meses —, os empresários começaram a impor uma mudança na lógica de funcionamento do Estado, que era fundado em arrecadação de impostos e uma burocracia muito lenta. Eles diziam que o Estado precisava deixar o mercado correr e diminuir os entraves para a produção e criação de produtos porque as empresas estavam disputando com empresas de outros países. Por conta disso, o Estado tinha que diminuir a carga de burocracias sobre a produção e precisava ser mais ágil, inclusive para garantir o financiamento e assim por diante. A sugestão era que o Estado se tornasse um facilitador de investimentos nessa corrida entre empresários e investimentos privados do comércio.
Mas nesse contexto havia uma segunda crise, que estava no seu ápice, que era a fragmentação de interesses na sociedade mundial, na sociedade civil: interesses tanto étnicos como questões raciais, antropológicas, de bairros, interesses locais e uma desconfiança em relação a tudo o que era público, de tal maneira que cada vez mais o Estado e os governos tiveram dificuldades para atender esses nichos de interesses. Ou seja, como um governante ou candidato ao governo fala para um país dividido em tantos grupos sociais, com tantos interesses locais, econômicos, de gêneros sociais e assim por diante, que explodiu a partir do século XX?
Então, estas duas questões, de um lado, a crise econômica e a nova base tecnológica e, de outro, a crise de representação, começaram a impelir os partidos políticos a cada vez mais se vincularem com seus financiadores de campanha, que são as empresas. O pagamento foi trazer, para dentro das propostas de governo, as propostas das corporações, de tal maneira que, nos anos 1990, tivemos duas grandes políticas de Estado, vindas dos Estados Unidos e da Europa, que transparecem de uma vez essa ideia de que a política de Estado tinha que ser uma política comandada pelos interesses das corporações empresariais, o que aumentou e aprofundou a crise de representação.
Assim, surge a agenda neoliberal da privatização total e diminuição dos impostos e gastos de governo, inclusive os gastos sociais sendo transferidos para fundações, que em grande parte são de natureza empresarial e gestão de equipamentos sociais, como é o caso de hospitais. E, de outro lado, uma concepção mais sofisticada que vem do Reino Unido, chamada Nova Gestão Pública, que no governo FHC o Ministério da Administração e Reforma do Estado – Mare, administrado pelo ministro [Luiz Carlos] Bresser-Pereira, chamou de Estado Gerencial. E, em Minas Gerais, onde moro, se transformou em “Choque de Gestão” pelo governo Aécio Neves. Muitos estados adotaram várias modalidades desse modelo. Essa concepção traz para dentro da gestão do Estado as técnicas de controle das empresas, que é o caso, por exemplo, das agências reguladoras, as quais no Brasil quase ninguém critica. Uma agência reguladora é uma agência que tem autonomia total e é constituída quase sempre por técnicos que vêm ou têm fortes relações com grandes empresas do país. Essas agências regulam o que o Estado tem que fazer a partir de princípios de mercado e nós nunca discutimos isso. No Reino Unido o nome das agências reguladoras é um pouco mais claro: chama-se “paramercados”. Aqui chama-se agência reguladora como se fosse algo defendendo o cidadão, mas elas não estão defendendo o cidadão, e sim a eficiência pelos moldes das empresas.
O que estou querendo dizer é que nós, a partir dos anos 1990, aceleradamente fomos trazendo todos os modelos de empresa privada, inclusive os interesses das empresas, para dentro do Estado e dos partidos políticos, de tal maneira que hoje não tem diferença nenhuma das propostas de condução do Estado do PT para o PSDB, para o MDB e, inclusive, para o PSL. Existem mudanças na forma de conduzir, mais autoritária ou com mais escuta, e também de ênfase, se tem alguma preocupação com a área social ou nenhuma, mas todos os governos se ajoelharam para o mercado no último período. Estamos quebrando a noção de política pública e o que estamos chamando de política pública é, na verdade, política de incentivo aos interesses privados.
IHU On-Line — Numa entrevista que nos concedeu no ano passado, o senhor disse que as prefeituras brasileiras estão destruídas em termos de políticas públicas e que não existem mais formuladores de políticas nos municípios. Isso se deve a esses acontecimentos que o senhor relatou? Pode nos dar exemplos de como a elaboração das políticas públicas numa concepção mais corporativa impactou a formulação das políticas no Brasil?
Rudá Ricci — É isso sim. Esse fenômeno é caudatário do esvaziamento dos municípios. Municípios como entes federativos autônomos, na prática, quase não existem mais e nos aproximamos do modelo chileno, porque no Chile o orçamento é unicista, isto é, somente federal. Nos municípios do Chile — até nos grandes, talvez com exceção da capital — existe um conselho, que é uma espécie de câmara de vereadores, que se confunde com o próprio governo, e a possibilidade de o prefeito e seus secretários agirem com autonomia é minúscula, é muito reduzida. O Brasil vem caminhando para isso sem alarde, como é muito normal na política brasileira: as grandes mudanças se fazem ou por decreto ou sem alarde, sem a discussão pública.
Esse movimento todo que vem dos anos 1990 engoliu os partidos, porque os partidos, sem legitimidade, em função da fragmentação dos interesses que falei antes, só podiam se agarrar ao financiamento para poder fazer publicidade e ganhar eleição. A legitimidade deles veio mais do financiamento privado do que efetivamente da identidade do eleitor com o candidato — há muitas pesquisas que revelam isso.
Além disso, ocorreu um problema grave durante os governos petistas, em especial nos governos Lula, que foi o esvaziamento do repasse dos recursos do governo federal para os municípios, obrigando-os a fazer convênios com as agências estatais federais, como a Caixa Econômica Federal, pelo Minha Casa Minha Vida, o Ministério do Esporte, pelo Programa Segundo Tempo, o Ministério da Educação e assim por diante. Se formos aos municípios brasileiros hoje, veremos muitas obras que vieram desses convênios e algumas são visíveis nas ruas, como os micro-ônibus escolares amarelinhos que têm a marca do governo federal.
Diferença ideológica diluída
A diferença ideológica e programática de um prefeito se diluiu nesses programas conveniados com o governo federal. Ora, foi mais de uma década de governo lulista nesse sentido e, a partir da queda da Dilma, tivemos um governo que freou ainda mais a economia, que foi o governo Temer. Isso significa que os prefeitos, em uma década e meia, acabaram aprendendo que o mais importante era ter técnico que conseguisse fazer os cadastros nos órgãos federais para conseguir os convênios, ou assessores que têm contatos com políticos, ou assessores de deputados federais para atingir recursos do governo federal e alguns estaduais quando o estado é rico. Isso diminuiu violentamente as cabeças pensantes dos governos municipais. Vou dizer mais: hoje, em função da penúria, o primeiro ministro de toda a prefeitura é o secretário da Fazenda ou o secretário do Planejamento, o que cuida do orçamento. Eu presenciei reuniões, e em uma específica de secretariado, o início da reunião foi com o secretário abrindo uma agenda e fazendo uma chamada da presença dos secretários, como se fosse uma escolinha. Isso mostra a transformação por que as prefeituras passaram nesta última década e é isso que faz com que as prefeituras não tenham mais cabeças pensantes e a elaboração de políticas públicas.
IHU On-Line — Esse modelo de parceria com convênios federais ainda se mantém nas prefeituras? É possível mudar essa lógica?
Rudá Ricci — Em primeiro lugar, como há uma penúria de recursos federais — basta ver as exigências dos prefeitos em relação aos recursos que não chegam até eles —, muitos governadores de oposição ganharam a eleição do ano passado em função dessa revolta dos prefeitos. Campanhas estaduais dependem dos prefeitos como cabos eleitorais, assim, muitos desses prefeitos vêm encostando em deputados federais, e estes passaram a ser uma espécie de representação cartorial dos municípios junto ao governo federal: eles é que fazem a ponte com seus assessores. O que precisamos entender é que se forjou uma nova estrutura da República brasileira que se apoia muito no esvaziamento técnico das prefeituras e, portanto, na sua dependência em relação aos governos estaduais e federais, e no papel cartorial do deputado federal. Sem mudar isso, sem uma reforma em que se consiga restabelecer o papel dos municípios como ente federativo autônomo, com recurso e capacidade de elaboração de políticas e com a reorganização, inclusive regional, das prefeituras, como existe na Itália, não mudaremos essa lógica.
Na Itália existe uma instância regional — que não temos no Brasil —, a qual é uma espécie de organização da gestão regional. Parte do orçamento, que hoje no Brasil está concentrado no governo federal, na Itália é descentralizado, como é o caso do turismo: 10% do total do orçamento público de investimento vai para essas câmaras regionais, que têm representação local; é uma instância que fica entre a prefeitura e o governo federal. Se nós não reestruturarmos esse modelo, os deputados federais continuarão mandando nos governos, como vimos no caso da Dilma, no caso do Temer e como já estamos vendo no caso do governo Bolsonaro: eles ficam completamente atados às peripécias e articulações da maioria dos deputados federais e à Câmara de Deputados. O Senado até perde um pouco de vigor porque são os deputados federais, através do baixo clero, que fazem todos os comandos, em função, inclusive, da Constituição de 1988, que aumentou muito o poder do parlamento no Brasil sobre o Executivo.
Nós temos um pacto federativo completamente destruído, e o pior é que, com os discursos radicais de extrema direita no Brasil, a tendência é centralizar ainda mais, porque a extrema direita odeia participação: ela só aceita a participação desde que seja batendo palmas. Então, temos uma situação muito delicada no Brasil e essa concepção democrática de gestão federativa está dando passos largos para trás há mais de uma década.
IHU On-Line — Então um dos pontos centrais para a elaboração de políticas públicas hoje no país é a descentralização dos recursos do governo federal?
Rudá Ricci — Sim, e participação. Ou seja, o cidadão precisa estar presente na tomada de decisão e hoje ele não sabe o que acontece nas reuniões, as quais são feitas a portas fechadas entre prefeitos e deputados federais. Não temos ideia nenhuma de se uma obra, quando chega numa cidade, já contaminou a decisão de como será financiada a próxima eleição. Isto é, o cidadão não tem mais controle nenhum; é um cheque em branco.
IHU On-Line — Essas dificuldades na formulação, implementação e gestão das políticas públicas é algo restrito ao Brasil ou outros países também enfrentam esse tipo de problema? Além da Itália, que o senhor mencionou, algum outro país serve de exemplo para o Brasil?
Rudá Ricci — O que temos visto em muitos países, nos últimos anos, é uma revolta contra esse processo de centralização e essa espetacularização. Estamos vendo o caso do Trump, que ganhou a eleição em cima de um discurso em que disse: “Os políticos estão tirando o seu dinheiro e eu vou entrar para o governo para devolver o dinheiro”. Esse foi o discurso dele já na posse e o que aconteceu? Ele ficou fazendo uma política altamente centralizada, como é típico da extrema direita atual, e acabou de perder a eleição na Câmara de Deputados e está sendo ameaçado de impeachment. Vemos que o discurso se baseou na descentralização, e, ao não descentralizar, ele perdeu a legitimidade em dois anos.
Há revoltas populares que geram formas de organização locais, como é o caso da Índia, um país que está se organizando, de maneira até populista e às vezes com uma certa intolerância religiosa, mas, do ponto de vista político, está se criando uma série de organizações, partidos e organizações políticas territoriais aos modos do que Gandhi propunha, de reforço de conselhos de aldeia. Além disso, há experiências na África e também na Espanha tem o Podemos, que faz consulta pública para quase tudo. Por exemplo, em Madri estão fazendo uma consulta pública sobre a questão habitacional, porque a prefeita eleita [Manuela Carmena] era vinculada ao movimento por habitação. Há uma série de ações, inclusive sociais, como o caso do Ocuppy, que fala da escuta do cidadão.
O que estou querendo sugerir é que os políticos, com dificuldade de se eleger numa plataforma que incorpore tantas demandas fragmentadas, estão se refugiando nessa centralização de orçamento, tentando fazer um toma lá dá cá, aumentando a decisão política só do parlamento com o Executivo e fazendo o cidadão ficar fora desse processo. É um refúgio, uma forma de escapar de uma armadilha de conseguir falar para os cidadãos. E, ao mesmo tempo, quando eles ganham a eleição, não conseguem governar, com exceção de algumas alternativas como as que citei agora.
Crise de representação cíclica
Talvez o autor que tenha nos dado mais experiências recentes nessa direção é John Keane, que tem um livro intitulado Vida e Morte da Democracia (Coimbra, Portugal: Edições 70, 2009) no qual ele lista essas experiências novas. Nos anos 1990 e no começo dos anos 2000, o Boaventura publicou um livro, um inventário de experiências nesse sentido, intitulado Democratizar a Democracia(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002). Esse é um tema que está sendo discutido há mais de 10 anos e muitos pesquisadores estão tentando levantar essa temática, ou seja, há iniciativas, mas o que precisamos entender é que há uma briga dos políticos profissionais do Executivo e do Parlamento central contra essas iniciativas da sociedade civil. Ou seja, não existe um diálogo que force uma reforma, de modo que vivemos uma crise de representação cíclica no mundo inteiro, a qual venho chamando de política de ciclo curto, isto é, o eleito dura dois anos, no máximo três, e perde totalmente sua popularidade — como já estamos vendo agora com Bolsonaro.
A pesquisa do Ibope de dezembro revelava que 75% dos brasileiros tinham expectativa positiva em relação ao governo Bolsonaro e a pesquisa divulgada ontem, 26-02-2019, baixou para 38%. Ou seja, desidratou 52% no quesito de confiança em menos de dois meses, que é a mesma perda que a Dilma teve em 2015, quando começou a crise que gerou o impeachment dela: ela perdeu 50% no mesmo período de apoio popular e Bolsonaro perdeu 52%. Portanto, vemos que não é uma questão ideológica; é uma crise de representação que não é particular ao Brasil. Isso se repete com Trump, com o governo português — o governo de Portugal que era de centro-direita foi agora para centro-esquerda. Assim, onde é a esquerda que governa, a direita ganha, onde é a direita que governa, a esquerda ganha. Um exemplo é o caso do México e outro é o do Chile.
Essa coisa de que o mundo está indo para a direita é uma leitura espetaculosa sem uma base analítica muito densa. O que está acontecendo é uma crise de representação: há uma intenção, dos cidadãos do mundo todo, de quebrar o monolitismo político do que chamamos de democracia, e os representantes oficiais políticos e a estrutura de Estado rejeitam esse tipo de descentralização. Em algum momento teremos que resolver isso, e o problema de uma crise como essa é o surgimento de lideranças populistas e demagógicas, que ficam falando que representam, mas na verdade governam de maneira centralizada. Em algum momento teremos que mudar a lógica democrática do mundo.
IHU On-Line — Com a renovação na Câmera dos Deputados, vê a possibilidade de mudança tanto em relação às políticas públicas quanto em relação à crise de representação?
Rudá Ricci — Não teve renovação. Isso é uma balela que a imprensa repercutiu. Não entendo porque a imprensa repercute isso. Aliás, entendo, sim: isso se dá porque a imprensa está com pouco tempo de apuração, não apura de maneira profissional e repete um erro grosseiro. A minha equipe do Instituto Cultiva fez um levantamento do perfil de cada deputado e constatou que a renovação da Câmara foi de 17%, uma das mais baixas da história do Brasil. Se falou que a renovação foi de 47% e eu provo que não houve isso, inclusive porque o conceito de renovação foi só em cima de nome, ou seja, pegavam o nome do eleito e olhavam para ver se era deputado antes, mas não olhavam se ele tinha ligação com algum clã, se era filho do prefeito ou do deputado estadual. Renovar é mudar, é fazer ficar novo, e nós só tivemos 17% de renovação.
Para fazer um estudo de renovação parlamentar, é preciso ter uma teoria por trás. São duas teorias usadas para isso: a nominalista, que é focada no nome, e a sistêmica, que olha de onde surgiu essa pessoa e se ela já estava vinculada a algum interesse tradicional. Por exemplo, se a pessoa era assessora de um deputado e foi apoiada por ele e entra no parlamento defendendo o que o deputado apoiador sempre disse, não houve renovação, a não ser no nome, mas a política é muito tradicional. Então, nessa análise, que foi solicitada pelo Sindicato dos Técnicos da Receita Federal – Sindireceita, fizemos um levantamento nome por nome e constatamos que a renovação foi de 17%. Trata-se de uma das renovações mais baixas, o que significa que essa crise da representação continua e o eleitorado se enganou novamente por falta de informação e vai, obviamente, ter desgaste como teve no governo Temer e no governo Dilma. Só não teve no governo Lula porque houve muito investimento do Estado e, finalmente, porque Lula é um dos políticos mais habilidosos — senão o mais habilidoso — da história contemporânea da política brasileira; o restante não tinha habilidade nenhuma, inclusive o atual, Jair Bolsonaro.
Fonte: IHU on line