[ENTREVISTA – Cristóbal Rovira]: “As elites políticas são irresponsáveis aceitando tudo que Bolsonaro diz”
Em 17/09/2019, do El País
Especialista em política comparada e populismos, o cientista político chileno Cristóbal Rovira Kaltwasser acredita que Bolsonaro possa ser reeleito “não por seus méritos, mas porque a oposição segue debilitada”
Reportagem: Felipe Betim
Especialista em política comparada e na relação entre populismo e democracia, o cientista político chileno Cristóbal Rovira Kaltwasser não se mostra surpreso com o fato de que a popularidade do presidente Jair Bolsonaro tenha caído já no início de seu Governo e se estancado em cerca de 30%. O mesmo fenômeno acontece com Donald Trump nos Estados Unidos, explica. Contudo, a estratégia de ambos os mandatários de radicalizar o discurso para manter essa base mínima unida pode ser suficiente para que ganhem outras eleições, segundo explica o professor da Universidade Diego Portales do Chile em entrevista ao EL PAÍS. Caso o mandatário brasileiro consiga sua reeleição, é provável que isso aconteça “não por seus méritos, mas porque a oposição segue debilitada”, argumenta.
Pergunta. Jair Bolsonaro recentemente atacou o pai de Michelle Bachelet e defendeu a ditadura Pinochet, como já tinha ofendido vítimas da ditadura brasileira antes. Seu filho, vereador Carlos Bolsonaro, afirmou no Twitter que, “por vias democráticas”, é difícil que as mudanças ocorram… O que essas afirmações significam?
Resposta. Há duas explicações. Através desse tipo de mensagem, que causa muita irritação, eles conseguem estar constantemente presente nos meios de comunicação. O mesmo vale para Donald Trump. Todos estão falando sempre deles. Além disso, conseguem mobilizar esse sentimento de mal-estar contra a esquerda para se apresentarem como salvadores da pátria. Esta é a mesma estratégia que a direita latino-americana está usando de forma geral. Bolsonaro é apenas uma versão mais extrema disso. No segundo turno do Chile, por exemplo, uma das ideias muito fortes que rodavam as redes sociais era sobre “Chilezuela”. Isto é, que votar na centro-esquerda faria com que o país viraria uma Venezuela. É uma estupidez, mas isso mobilizou um eleitorado que teme uma venezualização do país.
P. Mas além da estratégia eleitoral ou de comunicação política, que efeitos pode ter para a própria democracia?
R. O mais grave é que o sistema democrático começa a ser mais frágil. Quando Trump afirma, por exemplo, que apenas reconhecerá os resultados das urnas se ele ganhar, está dizendo que não acredita na democracia. Outro fator importante é até que ponto o sistema está sendo colocado em xeque somente pelas massas que votam. As elites políticas estão atuando de maneira sumamente irresponsável, adotando discursos antidemocráticos ou mostrando-se dispostas a aceitar tudo o que dizem. Nos Estados Unidos o Partido Republicano está calado. O que se espera é que essas elites sirvam para moderar essa agenda. Que digam que estão dispostas a colaborar com Bolsonaro sempre e quando as regras do jogo democrático sejam respeitadas. Não estão fazendo isso porque eles próprios não acreditam na democracia ou porque são oportunistas. Querem ganhar o poder e fazer coisas que irão beneficiá-los ou possuem uma agenda política própria. Por exemplo, se os setores econômicos não conseguem as privatizações que tanto almejam, não ficaria surpreso com que deixassem o Governo. Na Europa isso é um pouco diferente porque os sistemas são parlamentaristas. Necessariamente tem que haver uma moderação para que se possa negociar com outros grupos e chegar ao poder.
P. Acredita que a baixa popularidade de Jair Bolsonaro represente um fracasso para ele e seu Governo?
R. Não vejo dessa forma porque a maioria de seus eleitores nunca estiveram 100% de acordo com suas ideias, mas sim estavam de acordo de que o establishment político era corrupto e era preciso votar contra ele. Nós em ciência política por muito tempo ensinamos que as eleições só podiam ser ganhas quando um candidato, seja de direita ou de esquerda, se movia ao centro. Mas essa ideia é errada hoje em dia. Bolsonaro mostra muito bem que candidatos que radicalizam seu discurso podem ganhar as eleições. O caso de Trump também é bastante evidente quando, por exemplo, insiste de forma obsessiva em construir um muro na fronteira com o México. Por que isso acontece? Porque precisa mobilizar sua base, que nos Estados Unidos também ronda os 25% ou 30% do eleitorado. Como a participação é tradicionalmente baixa na votação, isso se traduz em cerca de 50% dos votos válidos e pode ser suficiente para seja reeleito.
P. O que explica esse fenômeno em todo o mundo?
R. Se perguntamos para os eleitores com qual partido mais se identificam, veremos que se inclinam cada vez menos para algum deles. Seja na Argentina, no Chile, na Alemanha ou nos Estados Unidos. Mas existe uma pergunta inversa que não é pela identidade positiva, mas sim a negativa: “Qual partido você mais odeia?”. Isso significa que você não vai votar naquele candidato que mais te agrada, mas sim naquele que vai assegurar que a pessoa que você odeia não ganhe. Isso aconteceu no Brasil: as pessoas não queriam nem o PT nem o resto da classe política. Por isso tudo não me parece estranho que tenha só 30% de apoio. Sua base sempre vai ser reduzida, mas pode ser suficiente para que seja reeleito.
P. Mas não está ficando claro que tanto Bolsonaro como Trump fazem parte desse establishment? Conseguirão reciclar esse discurso?
R. Se consideramos que Bolsonaro pertencia a partidos políticos e estava no Parlamento, ou que Trump sempre foi um multimilionário conhecido, podemos dizer que, sim, eles formam parte do establishment. Mas como não conseguem fazer tudo o que querem, já que não possuem maioria no Congresso, podem dizer que são impedidos de governar. E pedir que votem neles de novo para que possam fazer todas as reformas que o establishment impediu. Mas isso é uma faca de dois gumes. À medida que atacam esse establishment político, também é possível que esses mesmos atores políticos deem um basta nisso. Ou então que haja uma deriva autoritária, como aconteceu no Peru de Alberto Fujimori.
P. Bolsonaro é ex-capitão e tem apoio de nomes do Exército, colocou generais e ex-generais no Governo. Isso gera algum efeito de chantagem contra a classe política?
R. Sim, mas há tensões no Governo, composto basicamente por três grandes grupos: as elites militares, segmentos importantes das elites econômicas e uma elite mais conservadora atrelada ao mundo evangélico. Até que ponto são 100% compatíveis? Minha impressão é a de que isso não ocorre, sobretudo por causa da agenda econômica. Bolsonaro precisa manejar de forma muito difícil esses três grupos, e a grande incógnita e se conseguirá mantê-los unidos a médio e longo prazo.
P. O presidente também possui apoio importante de segmentos anticorrupção, mas está ao menos tentando intervir fortemente em instituições de controle, como a Procuradoria-Geral da República ou a Polícia Federal.
R. Isso de fato pode acabar causando danos a sua imagem. Devemos acompanhar o que acontece ao longo do tempo. Ele precisa de mais que 30% de apoio para ganhar outra vez as eleições. E, para que isso ocorra, vai depender do que acontece do outro lado com a oposição petista e com os demais partidos. Tenho a impressão de que até agora eles não conseguiram se rearticular e oferecer algo plausível para o eleitorado. E, por isso, pode ser que Bolsonaro ganhe by default. Não por seus méritos, mas porque a oposição segue debilitada.
P. Acredita que pode haver outro fenômeno como o de Bolsonaro na América Latina?
R. A ciência política é ruim de fazer previsões. Pode haver um efeito de difusão caso a haja algum crescimento econômico e consiga reduzir os índices de criminalidade, ainda que certamente isso ocorra sem que os direitos humanos sejam respeitados. Isso poderia fazer com que eleitores no Chile, no Peru ou na Bolívia vejam um modelo a ser imitado. Mas tendo a achar que Bolsonaro é um caso restrito ao Brasil, onde três fatores coincidiram para que fosse eleito: uma crise econômica muito severa e com graves consequências para o bolso das pessoas; os escândalos de corrupção que afetaram o PT e o restante da classe política; e o fato de que tentaram assassinar Bolsonaro durante a campanha. De toda forma, acredito que possam surgir candidatos similares, como José António Kast no Chile. Ele está criando seu próprio partido, elogia ditador Augusto Pinochet e já se reuniu com Bolsonaro várias vezes. Mas minha impressão é de que existe um teto eleitoral por causa da gigantesca rejeição que ele provoca.
P. Temas internacionais sempre tiveram pouca influência nas eleições brasileiras e latino-americanas. Por que o se fala tanto na Venezuela?
R. São vários elementos. Acredito que a esquerda mais moderada, como o PT, cometeu um grave erro por nunca ter condenado de forma clara o modelo chavista. Mesmo Bachelet se manteve muito silenciosa. Foi um erro grave porque agora a direita diz, com toda a razão, que estiveram calados por muito tempo. O problema vem de muito antes. Não com Maduro, mas desde Hugo Chávez. A direita soube politizar a questão de maneira estratégica. O segundo fator é a imigração. Uma imensa quantidade de venezuelanos estão indo para outros países e o tema passou ser ter grande relevância para a cidadania. Quando, por exemplo, um venezuelano passa a ocupar um posto de trabalho que seria seu.
P. E o que precisa fazer a esquerda latino-americana para conseguir o apoio outra vez?
R. Já de cara precisa refletir sobre seus erros. Não só por ter ficado calada diante da questão venezuelana, mas também por causa da corrupção. O que sucedeu com o PT foi a mesma coisa que sucedeu com os socialistas chilenos ou peronismo na Argentina e em muitos outros lugares. A esquerda também precisa desenvolver políticas públicas em áreas muito sensíveis como criminalidade e imigração. A direita tem vantagem ao propor soluções simplistas, ainda que muito ruins, e a esquerda precisa apresentar alternativas inteligentes. Por fim, precisa aproveitar as crises da desigualdade e do meio ambiente para mostrar que tem a solução para esses problemas. Há espaço para inovar, mas isso passa por se reinventar programaticamente.
P. Há lideranças que dizem que é preciso uma buscar outros atores políticos para formar uma frente de apoio a democracia e frear o projeto de Bolsonaro. Você concorda?
R. Sim, mas para que isso aconteça, é imprescindível conseguir que as elites que apoiam Bolsonaro se dividam. Que alguns digam “this is too much”. Qualquer estratégia tem que passar por não apenas mobilizar as bases e a cidadania, mas também tratar de incorporar certos segmentos que estiveram apoiando Bolsonaro, implicita ou explicitamente.
Fonte: El País.