[OPINIÃO]: Chile: as ruas contra os tanques
Em 24/10/2019, artigo de Antonio Martins, publicado em Outras Palavras
O divórcio entre o capitalismo e a democracia, tratado em inúmeros ensaios pelas ciências sociais nos últimos dez anos, ganhou a concretude das balas, no Chile, nesta segunda-feira (21/10). Diante de uma população sublevada desde a sexta anterior, as tropas e tanques continuam nas ruas. Já havia onze mortos até o domingo. Mas a violência dos militares intensificou-se desde que, no domingo, o presidente Sebastián Piñera fez nova reviravolta. Ele, que no sábado havia revogado o aumento das tarifas de metrô, estopim dos protestos, e reconhecido as razões da população para se indignar, recrudesceu e anunciou “guerra” contra os manifestantes.
O toque de recolher permanece, com requintes de terror psicológico. Não há um horário fixo em que a população é proibida de sair de suas casas: é o exército, por meio de seu chefe, o general Javier Iturriaga, quem anuncia o período de restrição, poucas horas antes de este começar. Neste ambiente de incentivo ao conflito, é natural que a violências praticadas pelas forças da ordem tenham se multiplicado. Há centenas de relatos, que circulam boca-a-boca ou pelas redes sociais. O número de presos, incerto, está na casa das centenas.
Porém surgiu outro fato surpreendente e inspirador (em especial, para o Brasil). Nas ruas, a população não recuou. Ontem, na Praça Itália, em Santiago, centenas de milhares de manifestantes voltaram a se reunir e desafiar o Estado de Emergência. A foto estampada na manchete de Outras Palavras ontem é emblemática: tanques de guerra tentam avançar sobre a multidão – mas esta não recua e os soldados hesitam. Mais: eclodiu uma greve geral, impulsionada por paralisação no setor dos transportes.
Surgiu uma questão: como dar à revolta consequência política? O fato de a população permanecer rebelada nas ruas, após a revogação do aumento das passagens, revela que a insatisfação vai muito além da tarifa. Mas de que maneira concretizar os grandes anseios das maiorias chilenas: serviços públicos de qualidade (em especial Saúde e Educação), aposentadorias dignas numa nova Previdência pública e, em especial, uma democracia real, um sistema político não corrompido pelo poder econômico e pelos privilégios?
Em Santiago, surgiu um esboço de saída. Nesta segunda, articulou-se uma coalizão de movimentos sociais e atores políticos em favor de uma Assembleia Constituinte. Reúne líderes das mobilizações como a que exige nova Previdência, setores do sindicalismo – em especial na área da Educação – e participantes do partido-movimento Frente Ampla. Apresenta um conjunto de reivindicações ligadas ao fim das políticas neoliberais e à desmercantilização da vida: redução da jornada de trabalho; reajuste das aposentadorias; reforma do sistema previdenciário; fim dos privilégios tributários aos ricos; restauração da Saúde pública; desprivatização do abastecimento de água. Acrescenta algo pouco comum nas agendas de esquerda: redução dos salários e privilégios dos parlamentares. E converge para a necessidade de reformar a Constituição. Ao contrário de outros países sulamericanos, o Chile não reescreveu a sua, após o fim do período das ditaduras militares. Não seria o momento de fazê-lo agora, quando cresce em todo o mundo a crítica ao declínio da democracia e o desejo de reinventá-la?
No fim da noite, a resistência popular forçou o presidente Piñera a um novo ziguezague. Menos de 24 horas depois de prometer “guerra” contra os protestos, ele prometeu que buscaria um “acordo social” para “responder às demandas” das ruas. Discurso vazio, certamente – mas revela como a luta social pode colocar em apuros os governantes da atual safra de direita.
Na manhã desta terça-feira no Brasil, Jair Bolsonaro sugeriu que, no Chile, o general Pinochet seria uma saída melhor… Se você não entendeu, não perde por esperar, diz uma canção de Geraldo Vandré. Para azar do ex-capitão, o ditador chileno está morto, é execrado pela grande maioria dos seus compatriotas e não poderá socorrer nem a Piñera nem ao próprio Bolsonaro, quando as maiorias se derem conta, também no Brasil, do verdadeiro caráter de seu regime.
Fonte: IHU
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