Donatella Di Cesare: O risco agora é a pandemia da mente
Em 30/03/2020, por Il Manifesto, via IHU on line.
É preciso reconhecer que os efeitos letais do coronavírus são, infelizmente, não apenas as mortes, mas também a imposição da distância com tudo o que traz consigo: tristeza, raiva, sensação de desamparo, frustração, solidão, insônia, angústia, depressão. A epidemia é psíquica. E tem proporções imponderáveis”, escreve Donatella Di Cesare, filósofa italiana, em artigo publicado por Il Manifesto, 29-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo:
Não é apenas um evento histórico, que marca um antes e um depois na história. É também um choque coletivo que afeta nossos corpos. Não seguimos apenas os eventos na tela; sofremos os efeitos todos os dias. O biovírus assassino, invisível e incompreensível, que impede a respiração e causa uma morte horrível, também afeta a vida cotidiana de milhares de maneiras.
O pânico inicial, exorcizado nas varandas, foi substituído por um sentimento de tristeza, de assombrada e amarga resignação. Decreto após decreto, tudo diminuiu, até parar. Isso nunca aconteceu: uma nação inteira em prisão domiciliar. E seria também a maioria dos “privilegiados” em comparação com todos aqueles que são obrigados a trabalhar nessas circunstâncias dramáticas: médicos, enfermeiros, trabalhadores de supermercados, entregadores, motoristas, taxistas, etc.
Enquanto se começa a abordar a questão da recessão econômica, que já está à porta, continuamos a discutir os aspectos mais políticos dessa crise, ou seja, a gravidade do estado de emergência, o perigo das “medidas” adotadas. Tira-se margens de movimento prometendo, aliás, garantindo a imunização ao cidadão-paciente que, mais ou menos de boa vontade, aceita todas as regras higiênico-sanitárias. É assim que essa nova forma de democracia imunitária funciona.
Mas por quanto tempo? E com quais efeitos? Há outra emergência que não foi discutida até agora e que é a emergência psíquica. Como se fosse um tabu, um tópico a ser evitado, permaneceu à margem do debate público. Sobre os testes de diagnóstico e, mais em geral, sobre a cura, vários especialistas, virologistas, médicos e técnicos ministeriais já admitiram as falhas da saúde no território, deixado quase exclusivamente nas mãos dos clínicos gerais. E se sabe a que preço. O problema, no entanto, não é apenas o corpo.
O risco da reclusão domiciliar em massa, uma experiência nunca experimentada antes, é uma enorme implosão psíquica que rasgará o silêncio fantasmagórico dos dias atuais. A vida de muitos mudou da noite para o dia. O nada parece engolir a vida. O trabalho, as atividades habituais, a rotina frenética – tudo é subitamente suspenso. As relações humanas estão paralisadas.
Amigos, parentes, conhecidos são apenas vozes distantes, rostos filtrados por telas. É claro que, graças a Deus, temos esses meios técnicos, sem os quais o isolamento seria ainda mais oneroso e insuportável.
É preciso reconhecer que os efeitos letais do coronavírus são, infelizmente, não apenas as mortes, mas também a imposição da distância com tudo o que traz consigo: tristeza, raiva, sensação de desamparo, frustração, solidão, insônia, angústia, depressão. A epidemia é psíquica. E tem proporções imponderáveis.
Ninguém garante que a sofrer as consequências da segregação sejam apenas aquelas pessoas com problemas psíquicos. As situações podem ser díspares. Há a família muito numerosa obrigadas a conviver em um espaço confinado e a pessoa que mora sozinha prisioneira de seu apartamento; o estudante que sente falta da universidade e o idoso definitivamente separado do mundo. Nem todo mundo tem os meios para lidar com a angústia do espaço, para processar a angústia.
E não deveria surpreender em um país que investiu tão pouco na cultura e que desacostumou os cidadãos à leitura. Um livro deveria ser trazido junto com a comida. E talvez reabrir as livrarias.
Embora o sistema de saúde nacional esteja literalmente sobrecarregado, ainda precisará examinar os efeitos da distância relacional, antes que a violência colha suas vítimas, começando pelas mulheres e pelos mais fracos. Consultores psiquiátricos? Iniciativas culturais, que, no entanto, sejam de massa?
A Itália tem a grande tradição basagliana na psiquiatria, à qual chegou a hora de recorrer.
Permanece-se imunes, se se aceita ser segregados. Essa é a epidemia psíquica do coronavírus. Um choque viral que pode ser devastador se não for enfrentado com solidariedade. Para os novos segregados, talvez essa seja a chance de refletir sobre a condição dos detentos.
Fonte: IHU on line