Auxílio é emergencial: burocracia não justifica demora
Em 06/04/2020. Artigo de Ergon Cugler, pesquisador da EACH/USP , no Jornal da USP.
Diante da pandemia da Sars-Cov-2 e da covid-19, o modelo de múltiplos fluxos de John Kingdon (1984) retoma espaço entre os estudiosos de políticas públicas. Isso porque Kingdon lembra como o contexto que estamos é determinante para que políticas públicas sejam inseridas na agenda.
No Brasil, um exemplo é a Renda Básica de Cidadania, debatida há anos, mas, apesar de todo esforço em se inserir na agenda governamental, foi em meio à pandemia que surgiu janela de oportunidade para ser implementada como Renda Emergencial. Cá estamos.
A agenda do Congresso, no entanto, segue tendência internacional. Países dos mais diversos espectros optaram pela adoção de medidas, como complementação de salário, renda emergencial, oferta de crédito com prazos dilatados e auxílio para empresas, buscando evitar a quebra da economia ao mesmo tempo em que se garante o isolamento ou quarentena – recomendados pela OMS.
Em meio aos fluxos de Kingdon, a mudança do eixo dinâmico ainda abre espaço para a comunidade científica pautar tomadas de decisão das políticas públicas. Não à toa, diversas medidas econômicas passam a se moldar a partir de análises de cenário de pesquisadores da saúde e cientistas.
Quem tem fome…
Por aqui, houve relutância do Executivo em adotar orientações da OMS, mais ainda em seguir as tendências – e urgências – econômicas para a preservação da vida e da economia ao mesmo tempo. Com o estímulo institucional para que se voltasse ao trabalho, a preocupação do povo foi objetiva: garantir a comida na mesa de sua família, ou mesmo funcionários, antes que a crise anunciada chegasse.
Na disputa da narrativa, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, chegou a afirmar que o “fim do isolamento [propagado pelo Executivo] foi pressão da Bolsa de Valores”. No mesmo fôlego, com a aprovação do Auxílio Emergencial na Câmara e no Senado (30), a cena se desdobrou entre o Executivo tentando puxar para si a iniciativa da destinação de recursos (de R$ 600 por pessoa) e o Congresso alertando que, se o Executivo quisesse, teria preparado Medida Provisória para liberação de recursos antes mesmo de o projeto ser aprovado na Câmara.
Ainda assim, mesmo com a aprovação no Senado, passaram-se dois dias para então o Executivo sancionar a medida, apontando ainda que seria necessária uma PEC aprovada no Congresso para somar à Medida Provisória e ao Decreto em elaboração. Nesse ritmo, em coletiva, o Ministério da Cidadania previu o primeiro lote de recursos apenas para 16 de abril, fazendo do auxílio bem menos emergencial do que deveria ser, especialmente para quem tem fome.
De fato, cabe mais mérito ao acaso – ou ao Kingdon –, pela aprovação da Renda Básica como tal, há tanto tempo na gaveta. Porém, diante da estrutura de dados e sistemas do Estado, a burocracia não é justificativa para deixar sem alimento aqueles que preservam suas vidas em casa.
… tem pressa
Figuras como o ministro Gilmar Mendes (STF) e a economista Monica De Bolle já alertaram para o fato de que, se o Executivo quiser, recursos podem ser liberados de imediato para a população de baixa renda, em especial aos já aptos pelo Cadastro Único, para além dos milhões mapeados por bancos de dados estaduais.
O próprio Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) destacou a urgência da liberação de recursos para a superação da crise que enfrentamos. Para além, medidas como o fim da fila de espera do Bolsa Família, reajuste dos pagamentos e criação de um benefício extraordinário temporário – incluindo 1,7 milhão de famílias habilitadas a receber os repasses [estudo completo].
Em um segundo estudo, o Ipea apresentou que, dentre os 59,2 milhões de brasileiros que devem ser beneficiados com o auxílio, 48,3 milhões (81,7% do total) poderiam receber o recurso de imediato, restando 10,9 milhões (18,3%) com possibilidade de serem rastreados mais rapidamente através da cooperação entre União, Estados e municípios. Para além, no cenário de menor agilidade do Executivo em empenhar esforços em localizar os beneficiários fora do Cadastro Único, o auxílio pode deixar de chegar a 8,8 milhões de famílias (23,9 milhões de pessoas).
Há ainda superávit financeiro do governo, para além do lucro decorrente das operações de câmbio do Banco Central. Sem contar fundos, como o de Amparo ao Trabalhador (FAT), ou da possibilidade de abertura de crédito extraordinário no orçamento, com capacidade de aporte dos recursos demandados.
Por um lado, o Executivo parece apostar na omissão como estratégia para postergar a entrega do auxílio e testar a fome da população, jogando culpa na burocracia para ver quem volta a postos. Com serenidade que nunca se viu.
Por outro lado, a janela de oportunidade que congregou a comunidade científica e a urgência do povo pela preservação da vida se mostra sólida, ganhando apoiadores nos mais diversos setores para se alertar às armadilhas retóricas.
Em suma, desvela-se a burocracia como responsável pelas decisões governamentais; inaugura-se terreno fértil para políticas públicas antes distantes de serem sequer debatidas; e tem-se como norte a urgência em dar respostas concretas ao povo. Até porque, quem tem fome, tem pressa – e muita.
Fonte: Jornal da USP