Artigo: Pactos só entre fortes
Em 19/06/2020, por Lea Souki – professora a PUC Minas
O caso da transição democrática espanhola de 1970 repercutiu entre setores das elites latino-americanas como uma possibilidade de se desfazer dos regimes autoritários sem reformas profundas.
De tempos em tempos, a cada crise, algum setor da sociedade evoca os Pactos de Moncloa[1]. Tancredo Neves citou-os inúmeras vezes como exemplo do êxito de uma transição democrática negociada. No auge da crise econômica que enfrentou, Sarney fez o mesmo, e eventualmente eles reaparecem como exemplo de negociação bem-sucedida. O ex-presidente Fernando Henrique prefaciou, na década de 1980, um livro cujo nome já oferecia uma sugestão e quase uma solução: A transição que deu certo.
Contudo, hoje na Espanha as esquerdas e os nacionalismos minoritários apontam nele o entrave para a solução das questões cruciais que foram empurradas para o futuro. Os contemporâneos dos acordos respondem que foi o que puderam fazer no espaço e na visibilidade que tinham naquele momento. É compreensível pensar como modelo o caso de uma transição democrática difícil e que deu resultados quase imediatos como a queda da inflação e a diminuição dos conflitos laborais, criando as bases de convivência em uma democracia plural.
O caso da transição democrática espanhola de 1970 repercutiu entre setores das elites latino-americanas como uma possibilidade de se desfazer dos regimes autoritários sem reformas profundas que mudassem a estrutura de classes ou implicassem em alguma aproximação com o socialismo, como foi o caso de Portugal à época. A evocação do modelo feita por Tancredo Neves se inseria claramente nesse propósito.
O pressuposto de Moncloa ter sido um caminho bem-sucedido na Espanha se baseava na complexidade do contexto de uma ditadura consistente que durou quase 40 anos e que foi capaz de sobreviver à derrota do nazi-fascismo em 1945. Seria então, em tempos contemporâneos, a transição mais difícil e a mais bem-sucedida. O cientista político Juan Linz (1926 – 2013), autoridade em transições à democracia, mencionou a possibilidade de acontecer, então, na Espanha uma guerra civil como na Iugoslávia, considerando que a conjuntura envolvia também questões territoriais, um fator complicador nas transições. Entretanto, toda essa passagem foi feita com relativamente pouco derramamento de sangue, em tempo curto, considerando a votação da Constituição em 1978.
Os setores reformistas do regime franquista se prepararam e esperaram cautelosamente a morte física do ditador, que só ocorreu em 1975. Do lado da oposição ativa, parte dela na clandestinidade, destacavam-se o Partido Comunista da Espanha (PCE), com seu braço sindical (CCOO) e de organizações civis, e o Partido Socialista Obrero Espanhol (PSOE), o mais antigo partido republicano da Espanha.
A primeira lição em que os especialistas no tema fazem finca-pé é de que havia várias estratégias possíveis para os diversos atores políticos. Não existia um script e tampouco necessidade histórica incontornável, que os movesse numa única direção, sendo que a transição nesse caso foi feita “a pié”.
Incerteza e tensão todo o tempo, desde a morte do ditador em 25 de novembro de 1975 até a invasão das Cortes, em 23 de fevereiro de 1981, foi esse o clima que prevaleceu durante o processo de transição na Espanha. Considero que essa data marca definitivamente o fim da transição, dado o posicionamento inequívoco do monarca como garantidor da Constituição. A ela se seguiu a eleição de Felipe Gonzalez como presidente de Governo e a entrada da Espanha na OTAN, no ano seguinte.
Que fatores teriam aberto o caminho em direção à democracia nesse difícil contexto de idas e vindas? Minha tese é que o aspecto pactuado da transição em questão, tomando a distância que o tempo propicia, foi orientado por dois fatores fundamentais. O primeiro foi o medo. Medo da repetição da “guerra de todos contra todos”. A memória da Guerra Civil (1936-1939), embora silenciada, marcava indelevelmente a sociedade. Quando morreu o ditador, esse sentimento prevaleceu inequivocamente nas entrevistas concedidas à imprensa por diversos atores políticos do momento. Não se sabia o que poderia acontecer. Se Thomas Hobbes tinha razão em seu Leviatã, o medo gera a esperança de superação, dá lugar à cautela e à racionalidade humanas.
O segundo fator, não menos importante, foi a motivação de setores das elites que, apoiando-se na pressão popular pela abertura, aspiravam fazer parte de uma comunidade próspera, sentir-se europeia. Franco gostava de dizer que os Pirineus separava a Europa “devassa” da reserva moral do Ocidente, a Espanha. Tanto isso é verdade que setores modernizantes das elites franquistas já estavam discretamente em contato com organizações e empresários europeus e com alguns setores do governo norte-americano.
A morte do ditador desata alguns desses arranjos sem, contudo, revelar as possibilidades de predominância estável de qualquer uma dessas facções. As Forças Armadas, muito afetadas pelos “nacionalismos minoritários”, ainda eram consideradas como capazes de reverter qualquer conjuntura, dentro da visibilidade permitida naquele momento.
No ambiente de pressão exercida pela sociedade, a capacidade de resposta das elites dominantes era demarcada pela oposição entre os reformistas modernizantes e os setores conservadores da ditadura, distribuídos em um amplo leque, da direita à extrema direita, estes não dispostos aos “riscos” oferecidos pela democratização.
A pressão da sociedade era especialmente intensa no mundo da cultura, das artes e dos movimentos sociais, com destaque para o setor laboral, que na segunda metade da década de 1970 apresentava o maior índice de combatividade da Europa, seja pelo número de greves realizadas como também por outras formas de reivindicação que formulava.
Essas considerações sobre o ambiente incerto, nebuloso e tenso da transição do franquismo para a democracia na Espanha nos autorizam a deduzir algumas conclusões preliminares sobre a natureza desse e de outros processos semelhantes ensaiados em diferentes países. O princípio fundamental para a sua compreensão é o de que, em política, pactos somente podem existir entre forças supostamente equivalentes. Em outras palavras, entre o fraco e o forte não há viabilidade de pacto, pois existe apenas dominação.
Outra dedução que podemos avançar é a de que pactos somente podem existir quando alguma ameaça extrema paira sobre os protagonistas da cena política. Explicando melhor: a ameaça supõe a existência de forças em conflito e, no caso de essas serem equivalentes, desenha-se a perspectiva de negociação, desde que haja consciência do perigo maior que ameaça a todos. Diante dessa ameaça, as opções são confronto ou negociação. Pagar para ver sempre será o cenário mais arriscado.
O conteúdo dos pactos celebrados entre 1977 e 1978, durante o governo de Adolfo Suárez,[2], entre 1977 e 1981, era econômico e político. O primeiro visava ao controle da inflação, medidas de saneamento econômico, reforma orçamentária e cambial. O conteúdo político da negociação visava criar condições para o enfrentamento da crise econômica caracterizada por inflação e queda do emprego. Tudo isso no ambiente de pressão das greves operárias comandadas pelos sindicatos recém-saídos da semiclandestinidade no final do regime.
A liberdade de imprensa e de organização foram pontos fundamentais do acordo político. As centrais dos trabalhadores negociaram o congelamento de greves por um período de dois anos em troca do desmonte imediato dos sindicatos franquistas, então nas mãos de uma de suas “famílias”, a Falange – organização entregue por Franco aos fascistas.
Na Semana Santa de 1977, data anterior aos pactos, Adolfo Suárez, contrariando a promessa feita aos “duros” das Forças Armadas em abril daquele ano, legalizou o Partido Comunista, ousadia pela qual aqueles nunca o perdoaram. Esse pode ser considerado um dos episódios mais exemplares do caráter negocial da transição. Com essa negociação, Suárez conseguiu que o PCE, através de seu líder, Santiago Carrillo, aceitasse a monarquia como forma de governo, embora a Guerra Civil (1936 – 1939) houvesse sido travada pelos comunistas sob a bandeira republicana.
No ano seguinte, o clima de negociação propiciou, não sem dificuldades, a aprovação da Constituição. Nela se sepultava, pelo menos temporariamente, a questão da monarquia como forma de governo, por não ter sido feito nenhuma consulta em referendo. O conceito de Constituição das Autonomias, consagrado na nova Carta, apaziguou temporariamente a combatividade dos nacionalismos basco, catalão, galego e canário.
Com o receio de parecer repetitiva volto ao ponto da condição básica de negociação, a suposta equivalência das partes e o desejo de evitar a confrontação, cujas consequências podem ser desastrosas para todos. Isso não significa que a equivalência de forças sempre leve a pactos. Sua pré-condição é a de que a crise deve ser percebida por todos os atores políticos como ameaçadora, o que supõe a percepção da sociedade como um corpo integrado.
NOTAS
[1] Consenso entre amplas forças políticas da Espanha que facilitou a transição entre o regime franquista e a democracia em 27 de outubro de 1977. O nome Moncloa remete ao palácio do governo após a queda do franquismo. Somente um partido não assinou o acordo que foi firmado por Alianza Popular, Minoria Catalana, PCE, PSOE, Grupo Mixto, Grupo Socialista do Congreso, UCD e PNV. O acordo foi aprovado nas Cortes, com um voto contra na Câmara, e no Senado com três votos contra e uma abstenção.
[2] A liderança mais surpreendente foi Adolfo Suárez, um “azul”, como era chamado o partido único, Movimiento Nacional. Fidelíssimo a Franco, com o afastamento do vice, foi escolhido presidente do Governo e revelou inesperadas coragem e capacidade de articulação.
Léa Souki é cientista política, professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas)
Fonte: GGN