OPINIÃO: A paz dos cemitérios
Em 11/08/2020 – Por IHU on line
“Os escândalos de corrupção, seguidos pelo lavajatismo e pela sustentação da polarização pelo petismo esfrangalharam o espírito progressista das estruturas democráticas. Muita gente cansou de ouvir falar em liberdade, igualdade, políticos, minorias, supremo, partidos. Elegeram um autoritário antissistema para ‘mudar o disco’ e lhe deram carta branca em troca de paz. Bastava para Bolsonaro substituir o golpismo e a cafajestagem pela malandragem e pela dissimulação, para que essa paz chegasse. E ela chegou. Será a paz dos cemitérios. Acostumem-se”, escreve Christian Edward Cyril Lynch, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, formado em direito e especializado em ciência política, em texto publicado em seu Facebook, 10-08-2020.
Eis o texto.
Acostumem-se. Vai piorar antes de melhorar. Não que vá ter ditadura escancarada, como da última vez que houve um governo conservador com o vento a favor. Mas não há dúvidas de que há hoje um terreno social tolerante, predisposto ao novo “governo Figueiredo“, tocado cada vez mais pelos militares aposentados. Governo que encontrou o tom certo para um autoritarismo “democrático” nos dias de hoje, mas à moda brasileira: mole, cínico, malandro, ensaboado, escorregadio.
Ao assumir, o governo Bolsonaro não tinha nada, a não ser manipulação digital, e gente inexperiente, burra e grossa. Hoje ele já sedimenta, com método próprio de cooptação e técnicas novas de “governabilidade” comprovadas. O Pazuello é um exemplo de técnica bem sucedida da nova “governamentalidade”, neutralizando e apagando a área conflagrada com sua presença/ausência, que vai se replicando para outras áreas, como cultura e meio ambiente. Deu problema? Nomeie gente que nada entenda do assunto. A área problemática desaparece, por omissão, incompetência e paralisia.
Ao mesmo tempo, a consciência jurídica do país vai erodindo. Na área jurídica, você tem a difusão de uma mentalidade antijudiciarista, baseada na recuperação da doutrina da razão de Estado e de separação estrita de poderes. Começou no tempo do Temer e justificou sua absolvição no TSE. Enquanto isso, o governo leiloa os cargos de ministro do STF, cooptando os juristas ambiciosos, arrivistas e/ou oportunistas. No mais, desmoraliza-se e engambela-se a autoridade do tribunal, empregando-se mil malandragens. Diz que há e não há dossiê de arapongagem, etc.
No campo partidário, o presidente largou o governo nas mãos dos militares, mais competentes do que ele, neutralizou os radicais e partiu pra campanha da reeleição. Deixou o exótico e periclitante trumpismo de lado para apostar mais fortemente no “lulismo às avessas“. Vai descobrindo aos poucos e apostando, corretamente, na tradição nacional. Passou a distribuir cargos de segundo escalão pro centrão, fingindo, por não dar do primeiro, que não está fazendo presidencialismo de coalizão. O Rodrigo Maia já disse que não vai rolar impeachment.
No campo da saúde, o país já normalizou o morticínio da COVID. O desvelamento da tentativa de golpe militar pela Piauí caiu no vazio. Os escândalos do Flávio e da Michele Bolsonaro derrubariam a república quatro anos atrás. Hoje ninguém quer saber. Restaurar autoridade, nesse país, também significa restaurar impunidade. Enquanto isso, a incapacidade de articulação da oposição, o oportunismo dos políticos profissionais e a burrice da esquerda parecem infinitos. Todo mundo está cansado, ninguém aguenta mais briga depois de 7 anos.
Os escândalos de corrupção, seguidos pelo lavajatismo e pela sustentação da polarização pelo petismo esfrangalharam o espírito progressista das estruturas democráticas. Muita gente cansou de ouvir falar em liberdade, igualdade, políticos, minorias, supremo, partidos. Elegeram um autoritário antissistema para “mudar o disco” e lhe deram carta branca em troca de paz. Bastava para Bolsonaro substituir o golpismo e a cafajestagem pela malandragem e pela dissimulação, para que essa paz chegasse. E ela chegou.
Será a paz dos cemitérios. Acostumem-se.
Fonte: IHU on line
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