O que fazem as prefeituras de Belo Horizonte, Betim e Contagem para a população em situação de rua?
Conheça as ações dos poderes executivos dessas cidades
Por Marcelo Gomes
“Aqui debaixo do viaduto Helena Greco é onde a gente não morre de fome”. A constatação é de *Marisa, mulher negra de 42 anos. Todas as noites ela e seus dois filhos ficam debaixo do elevado, no Centro de Belo Horizonte, em busca de comida. Não raro, organizações sociais entregam ali marmitas e ou cestas básicas. “Perdi meu emprego de salgadeira por causa da pandemia. Hoje eu moro em uma ocupação. Fiquei o ano passado todo nas ruas, mas ainda dependo muito delas”, conta.
A pandemia de coronavírus não gerou apenas uma crise sanitária, mas econômica também. Muitos perderam a renda, como *Marisa. Existe, portanto, forte tendência de aumento da população em situação de rua. Diante desse cenário, a Assessoria de Monitoramento dos Poderes Públicos do Nesp (Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas/Arquidiocese de Belo Horizonte) averiguou o que as prefeituras de Betim, Contagem e da capital estão fazendo.
Antes de mostrarmos as ações dos poderes públicos, é importante dizer quem são os cidadãos que fazem das ruas um lar e porquê.
Quem são as pessoas que estão vivendo nas ruas
Não existe um perfil claro daqueles em situação de rua. Pesquisas indicam que são socialmente vulneráveis: desempregados, de baixa escolaridade, portadores de sofrimento mental e imigrantes. A maioria, homens negros e maiores de 18 anos.
De acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte, há 4.600 cidadãos em situação de rua. Pesquisa do grupo Polos de Cidadania da UFMG indica um número maior: 8.374, dado relativo a junho deste ano. A discrepância ocorre em função da diferença na forma de estimar essa população. Desse último contingente, segundo a UFMG, 83% são negros e ou pardos. Mais da metade deles, 52,2%, têm ensino fundamental incompleto.
Segundo dados da Prefeitura de Betim, existem na cidade 110 pessoas em situação de rua, das quais 32 são contempladas com o aluguel social. Deduz-se, então, que restariam 78 pessoas vivendo nas ruas. Esse número parece excessivamente baixo, quando considerado em proporção à população da cidade. A prefeitura de Betim utiliza apenas o Cadastro Único para identificar pessoas em situação de rua.
Já Contagem utiliza, além do Cadastro Único, também as abordagens de rua feitas por agentes de saúde para quantificar os moradores de rua. Nesse município, segundo dados oficiais, são 1.000 pessoas vivendo nessa situação. Comparativamente, esses números sustentam a suspeita de que em Betim possa existir um quadro bem mais grave do que o número apresentado poderia levar a crer.
As informações mais atualizadas sobre pobreza, do Ministério da Cidadania, são de setembro de 2020. Havia, naquele período, 669.267 pobres e/ou extremamente pobres nas três cidades. Ou seja, 18,5% da população total. Entre esses municípios, Betim é onde há mais pessoas nessa situação: 38,7% dos habitantes.
“As motivações são diversas para a ida às ruas. Não é só por causa do desemprego. Vemos um aumento expressivo de usuários de drogas nas ruas. Um grupo que também contribui são de ex-presidiários, que não conseguem se recolocar no mercado de trabalho, por exemplo. Também há motivações de cunho familiar, como a questão da orientação sexual”, explica o professor Frederico Poley, pesquisador do assunto na FJP (Fundação João Pinheiro). “Se antes era comum ver nas ruas crianças, hoje é comum ver idosos”, completou.
O professor Frederico chamou a atenção para uma característica desse público: o anonimato. Isso pôde ser atestado nas localidades que visitamos; ao conhecermos a mulher que abriu esta reportagem, de imediato, ela se negou a identificar-se. Não revelar sua própria identidade é uma das estratégias de sobrevivência nas ruas.
Conversamos também com um casal de venezuelanos. Falaram pouco. Jovens, ambos com 21 anos de idade, migraram em decorrência do colapso econômico no país vizinho e estão nas ruas da capital porque não se inseriram no mercado de trabalho.
A assistente social e militante de movimentos em prol da população de rua, Regina Paredes, nos acompanhou nas visitas. Segundo ela, de modo geral, o comedimento decorre de vergonha ou do fato de muitos serem usuários ou vendedores de drogas. Qualquer exposição, então, poderia facilitar buscas policiais. “O vício é um problema de saúde pública. Além disso, muitos deles, para não passarem fome ou para sustentarem o vício, são obrigados a furtar e vender drogas”, disse.
Afinal, qual a atuação das prefeituras de Belo Horizonte, Betim e Contagem?
Pedimos às prefeituras que informassem quais as políticas públicas adotadas para atender essa parcela da população. Abaixo, constam as respostas, avaliadas por Claudenice Lopes, coordenadora da Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte, e por Samuel Rodrigues, ex-residente das ruas e atualmente coordenador estadual do Movimento Nacional da População em Situação de Rua.
O que se observa, à primeira vista, nas respostas das prefeituras é a predominância de ações de caráter assistencial. Isso ocorre inevitavelmente porque a área provê as necessidades urgentes. Já as políticas emancipatórias, como as de inclusão produtiva, aparecem timidamente na Capital e não foram mencionadas em Betim pela Assessoria de Imprensa.
“A gente avalia que, no processo histórico, essas ações [assistenciais] foram conquistas importantes. Antes, a população em situação de rua era tratada como grupo apenas da polícia. Ainda que essa prática continue, esses serviços asseguram algum direito. E para o atendimento emergencial essas ações nas três cidades são importantes, mas não satisfatórias. São serviços insuficientes. Alguns, por exemplo, não estão em todo território das cidades”, observou Claudenice.
De fato, a estrutura e os serviços públicos de assistência social são insuficientes, dado o tamanho das necessidades e dos desafios. Na capital, os 16 abrigos existentes poderão atender, neste ano, aproximadamente 2.000 pessoas. Isso não é metade dos 4.600 residentes nas ruas, segundo a prefeitura.
Além disso, abrigo não é moradia. Em alguns desses locais as pessoas podem ficar durante o dia; em outros, apenas à noite. Por essa razão, o simples fato de haver aumentado o número de vagas não é, por si só, a solução para o problema, do ponto de vista das pessoas que necessitam do serviço público. Samuel Rodrigues chama a atenção para situações em que a pessoa em situação de rua tem de deixar o abrigo público às seis horas da manhã porque o serviço oferece apenas um local para o pernoite.
Em Betim, existe apenas um abrigo. A capacidade de acolhimento é de quarenta pessoas ao todo. Levando em conta a estimativa oficial de 78 moradores de rua, 38 pessoas não seriam atendidas.
Em Contagem existem dois locais de abrigo imediato. O Abrigo Bela Vista e a Casa de Passagem. O Executivo da cidade nos informou, conforme a resposta acima, somente a quantidade de 100 vagas existentes na Casa de Passagem. Sendo que há 1.000 moradores de ruas no município, significa dizer que 900 pessoas não são atendidas por esse serviço.
É importante salientar ainda que praticamente os abrigos das três cidades não são equipados para atender satisfatoriamente famílias ou mulheres. Em sua maioria, eles se destinam aos homens solteiros, conforme a assistente social Regina Paredes.
Os Centros Especializados para População em Situação de Rua (Centro Pop) cumprem relevante função. São geridos com recursos da União, do estado e dos municípios. Nesses locais, as pessoas que moram nas ruas, além de terem um suporte básico, podem usufruir de direitos e políticas públicas inacessíveis nas ruas. A luta atualmente é pela ampliação dos serviços e de outras ações que se efetivam graças a esses centros. É o caso dos programas de geração de renda e de casa própria.
Algo também grave para Claudenice e Samuel são as escassas ações de geração de renda, que contribuem para emancipar os indivíduos das ruas. Como visto nas ações acima, Belo Horizonte possui o programa Estamos Juntos, que oferece vagas de trabalho na prefeitura e cursos de qualificação profissional. Outra ação nesse sentido, embora não se destine exclusivamente às pessoas em situação de rua, é o EJA (Educação de Jovens e Adultos). Essa é uma modalidade de educação destinada àqueles que não completaram os ensinos fundamental e médio.
Além das ações de Contagem citadas no Card, repassadas pela assessoria de imprensa da prefeitura, também apuramos outros serviços oferecidos pela cidade. Grande parcela da população em situação de rua nesse município está nas ruas por causa de conflitos familiares, decorrentes do uso de drogas.
Por essa razão, o Executivo oferta o Paefi (Proteção e Atendimento Especializado em Famílias e Indivíduos). No âmbito dessa ação, a prefeitura realiza uma interlocução com o indivíduo nas ruas e sua família. A intenção é diminuir os conflitos entre ambos.
O abrigo Bela Vista é onde a prefeitura insere as pessoas em situação de rua em políticas de geração de renda, por exemplo. Até a primeira semana de outubro eram 46 pessoas atendidas. Dessas, sete trabalham, em cozinhas ou restaurantes populares.
O Executivo do município ainda se articula com uma construtora para que uma área degradada pela empresa seja reflorestada por meio do trabalho de pessoas em situação de rua. Ainda está em andamento a construção de uma cozinha comunitária, onde serão vendidos alimentos para empresas. E, neste momento, o departamento de assistência social promove um censo, feito por abordagens sociais, para identificar minuciosamente quem são os moradores de rua na cidade.
Participação política da população em situação de rua
“Eu sempre digo: ‘não deixe ninguém fazer política para você, mas por você’. Senão, vai se fazer política com as medidas do outro”, opinou Samuel Rodrigues. Segundo ele, o movimento da população em situação de rua começou a incidir fortemente na política a partir de 2009. Em dezembro daquele ano, o presidente Lula (PT) instituiu a Política Nacional para a População de Rua, por meio do Decreto 7.053. Esse instrumento jurídico foi o norte para as ações nos estados e municípios.
Não obstante todos os avanços, Samuel Rodrigues cita as barreiras burocráticas ainda persistentes que impedem moradores de rua de acessarem os Poderes Públicos. Exemplo disso é a restrição do acesso às repartições públicas trajando bermuda. “Hoje em dia, isso continua acontecendo um pouco. Lá na Câmara de BH para entrar tem que apresentar documentos e dizer onde está indo. Às vezes os sujeitos não têm documentos e estão indo lá para pedir apoio a algum vereador e é barrado”, observou.
Há menções a ocorrências desse tipo pelo menos na Câmara de BH, na de Contagem, e na Assembleia Legislativa de Minas.
A respeito da incidência política em si, Samuel cita as ações de moradia e renda como as principais lutas atuais. “Sobretudo nessa pandemia a gente precisa discutir muito isso. O sujeito que está nas ruas, que já ganhava muito pouco, perdeu esse pouco. Muitos deles trabalham lavando carros e com outras atividades parecidas. Com o confinamento de muita gente, a renda praticamente acabou”, disse Samuel.
Qual o direito dos que estão nas ruas?
O atual momento de crise na economia nacional tende a empurrar mais pessoas às ruas. Implementar uma rede de assistência social para barrar o aumento da extrema pobreza é o grande desafio. Belo Horizonte deu um passo importante nesse sentido. Na última semana de setembro, a Câmara da cidade aprovou o Auxílio Belo Horizonte. Consiste em um benefício, cujo valor oscila entre R$ 100 e R$ 400 concedido aos mais vulneráveis durante seis meses.
As pessoas em situação de rua também são cidadãs. Mas, por possuirem peculiaridades, esse público tem outras garantias. Elencamos abaixo os direitos dessa população por áreas. As informações foram baseadas no decreto 7.053 de 2009, o qual institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua; na lei federal 8.742 de 1993, que organiza a Assistência Social; e em publicações do Ministério Público estadual.
Assistência Social
- direito a abordagem de rua feita por agentes públicos para levar as demandas desse segmento às esferas políticas;
- direito a terem centros de referências, onde podem fazer consultas médicas e psicológicas, sacarem documentos, terem atendimentos jurídicos, acessarem projetos de inclusão produtiva e tomar banhos;
- tirarem documentos mesmo sem comprovante de residência;
- terem casas de acolhimentos temporário;
- direito ao Benefício de Prestação Continuada de um salário mínimo, se foram pessoas com deficiência ou maiores de 65 anos que não possuem renda.
Moradia
- Os governos, sejam federal, estadual e ou municipal devem promover acesso à moradia própria;
- direito ao aluguel por determinado tempo;
- poderão ter direito à propriedade se um ou mais moradores de rua estiverem ocupando imóvel abandonado por mais de cinco anos;
- direito a serem contemplados com terras públicas sem destinação específica;
Trabalho e renda
- direito aos programas de qualificação profissional;
- direito a se cadastrarem como Micro Empreendedores Individuais (MEI). Muitas das pessoas em situação de rua trabalham de maneira autônoma como catadores de material reciclável, profissão reconhecida no Código Brasileiro de Ocupações. Logo, eles podem ter acesso à aposentadoria, ao seguro invalidez, entre outros, por meio do MEI.
Saúde
- Qualquer unidade do Sistema Único de Saúde (SUS) pode ser acessada pelos moradores de rua, independente de terem ou não documento;
- direito à preservativos de graça nas unidades do SUS;
Outros direitos
- direito ao casamento gratuito, realizado nas defensorias públicas;
- direito de ir e vir nas repartições públicas, apesar das vestimentas;
- direito à alimentação gratuita ou de menor valor nos restaurantes populares;
- direito ao voto;
- Qualquer morador de rua que sofrer ameaça ou prejuízo de algum direito pode pedir gratuitamente à Justiça reparação do dano provocado;
- Se houver prisão ou ameaça de prisão ilegal, pode ser requerido o habeas corpus para o juiz da comarca mais próxima. Abaixo reproduzimos um modelo de tal peça jurídica, que pode auxiliar militantes dos direitos humanos bem como movimentos sociais.