Silêncio ronda a violência policial
População teme denunciar agressões e autoridades evitam debater o assunto
Andrea Castello Branco
O líder comunitário André Cavaleiro estava fotografando a comemoração da vitória de um time de futebol do Alto Vera Cruz, em Belo Horizonte, quando, depois de obedecer a abordagem, foi agredido pelas costas por policiais. Não fossem os vídeos gravados por vizinhos e não fosse André ser quem ele é – uma liderança da Central Única das Favelas (CUFA) na região Leste de BH-, talvez seria mais um caso de agressão que não sairia nos jornais e tampouco entraria para as raras estatísticas existentes. Os motivos para tão poucos dados sobre a violência policial são dois: o medo silencioso da população e o silêncio conivente do estado.
“O jovem, preto, favelado não denuncia porque sente que a polícia é mais forte. A forma de denunciar expõe a pessoa demais. E os próprios policiais sabem que o morador tem medo. Desceu do morro a atitude já é outra, porque os prédios e casas têm câmeras, fica registrado. Por isso é recorrente na periferia”, explica André Cavaleiro, nascido e criado no Alto Vera Cruz, Agente de Saúde e professor de fotografia no Fica Vivo. André acredita que o ambiente político do país gerou uma permissividade para a ação policial que a tornou mais agressiva do que já era.
“O aval para o uso da força, a liberação de armas, essa intolerância, isso interfere no trabalho do policial, aumenta a agressividade e fomenta a impunidade. Porque eles estão tendo mais liberdade para usar a força. Isso influencia demais aqui na ponta”, diz André fazendo uma ressalva ao Gepar, Grupo Especializado de Policiamento em Áreas de Risco que faz as vezes de polícia comunitária. “Eles estão aqui todo dia, são os mesmos, o sargento é do diálogo e busca agir de outra forma. Mas a polícia não tem fronteira, então o Tático Móvel entra com tudo”, conta.
A tecnologia tem sido uma aliada para quem se sente ameaçado. “É a palavra deles contra a nossa. Então, se tem uma abordagem, alguém filma. Porque o que eles chamam de uso moderado da força é chute e tapa”, diz. A mesma ferramenta que ajudou André a denunciar a agressão pode garantir mais segurança e coibir esse tipo de abuso. Foi por entender que o direito ao uso da força não confere aos policiais o direito à violência que o deputado estadual Jean Freire (PT) propôs uma lei que prevê a instalação de câmeras em viaturas e microcâmeras nas fardas de policiais militares.
“A polícia mineira e a brasileira têm uma letalidade muito alta. O objetivo do projeto é monitorar as ações policiais para diminuir esse índice e proteger tanto a sociedade quanto os policiais. Além disso, o uso de câmeras já demonstrou que diminuiu de maneira brusca a letalidade nos batalhões onde foi adotado. Então o projeto nasce de evidências”, defende Jean Freire. Aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, o PL tem chances de virar lei, uma vez que o uso da tecnologia é uma das promessas de campanha do governador Romeu Zema.
Um experimento realizado em Santa Catarina, mostrou que o uso de câmeras de filmagens nas fardas resultou em uma queda de até 61,2% no uso de força pelos agentes de segurança, incluindo uso de força física, armas letais e não letais, algemas e realização de prisões em ocorrências. Em São Paulo, as câmeras de vídeo foram instaladas em 18 batalhões como um teste. De maio para junho, a queda nas mortes por intervenção policial foi de 54% nos 134 batalhões paulistas. E nenhuma morte foi registrada nos 18 batalhões que estão usando câmeras. Por um sistema, os comandantes acompanham o trabalho nas ruas e as câmeras ficam ligadas durante todo o turno de trabalho registrando todas as ações das equipes.
Dados confirmam aumento da violência
A percepção de crescimento do abuso da força policial não é sem motivo e está retratada em um relatório interno da Ouvidoria Geral do Estado (OGE) que mostra que entre 2019 e 2020 houve um aumento de 56% nos registros da Ouvidoria de Polícia, totalizando 6.525 processos. Dentre eles, 4.811 se referem aos subtipos “Denúncia” e “Reclamação”, embora o resumo do relatório registre “Pedidos de Informação” como assunto principal das manifestações na Ouvidoria. A OGE foi procurada para explicar a aparente contradição, mas não respondeu à reportagem.
Outro dado que reforça o aumento da violência policial está no relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que aponta que em 2020 o país atingiu o maior número de mortes em decorrência de intervenções policiais desde que o indicador passou a ser monitorado. Com 6.416 vítimas fatais, as polícias estaduais produziram, em média, 17,6 mortes por dia. Desde 2013, primeiro ano da série monitorada pelo FBSP, o crescimento é da ordem de 190%.
As vítimas, em sua maioria, são homens, jovens e negros. De acordo com o Anuário da Violência, 75% das vítimas de letalidade policial são negras, no país onde 56% da população se declara negra. A sociedade tem consciência do racismo praticado nas abordagens policiais, como mostra uma pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva em que 94% dos 1.652 entrevistados reconhecem que, no Brasil, uma pessoa negra tem mais chances de ser abordada de forma violenta do que uma pessoa branca.
Formação e combate ao preconceito
Embora as forças policiais estejam sob o comando do governo estadual, no campo da segurança pública o município também tem seu papel de articular as forças policiais e adotar políticas públicas em um Plano Municipal com foco na prevenção da violência. A Assessoria de Monitoramento procurou as secretarias de Segurança e Prevenção de Belo Horizonte, Contagem e Betim para saber quais políticas públicas são promovidas pelos municípios.
Daniela Tiffany, subsecretária de Defesa Social de Contagem, diz que a maior parte das queixas por abuso policial registradas no município se referem à Polícia Militar, que tem seu comando na capital e é vinculado ao governo do estado. “O município tem pouco poder, nesse sentido. O que podemos fazer é buscar uma política de segurança pública em que a Guarda Municipal seja valorizada e possa fazer um contraponto a essa concepção de segurança como repressão. A única forma de trabalhar preconceitos é com o diálogo. Só assim é possível romper com essa lógica moral que coloca em dúvida uma turma de jovens se divertindo numa praça à noite. Prevenção não é impedimento”, afirma Daniela Tiffany.
Segundo ela, isso tem sido feito em Contagem por meio de capacitações sobre juventude, gênero e religiões de matriz africana, dentre outros temas, com a perspectiva de formar uma segurança comunitária forte e integrada à população. Quanto aos canais de denúncia disponíveis para o cidadão, a subsecretária diz que eles existem mas não são fáceis de acessar e por isso planeja o lançamento de uma ouvidoria especial para o próximo ano.
As secretarias de Segurança de Belo Horizonte e Betim foram procuradas para falar quais políticas e estratégias adotam para reduzir esse tipo de violência e fortalecer a segurança pública, mas preferiram não se pronunciar sobre o assunto. A Secretaria Municipal de Segurança e Prevenção de Belo Horizonte respondeu que o secretário Genilson Ribeiro Zeferino não poderia conceder entrevista e que nenhuma outra fonte técnica da secretaria poderia falar sobre o tema. A assessoria da Prefeitura de Betim respondeu que “o entendimento é o de que a gestão municipal não tem autoridade para discorrer sobre o tema, já que não tem acesso aos números, aos boletins e a todas as informações sobre os possíveis casos”.
O silêncio das autoridades sobre essa face da violência e as medidas necessárias para mitigá-la se reflete na população, que não se sente segura e amparada para denunciar as agressões. Segundo Camilo Mendes, coordenador do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Betim, até hoje a entidade não recebeu nenhum relato de violência policial. “Existe muito medo em denunciar, na periferia principalmente. Além disso, não existe um órgão específico, seja um Conselho de Direitos Humanos ou uma Ouvidoria de Polícia, o que dificulta o acesso da população. Não é fácil denunciar”, afirma Camilo.
Para Daniela Tiffany, subsecretária de Defesa Social de Contagem, há uma legitimação da violência que passa pela omissão da polícia investigativa e a conivência da Justiça. “Precisamos compreender que esse é um problema social. É como se a pessoa merecesse sofrer violência”, diz. A presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, a deputada Andréia de Jesus (Psol), acredita que uma das formas de inibir a violência policial é a responsabilização do Estado, com indenização das vítimas e dos parentes. “Há uma orientação racista e a culpa, a responsabilização fica no agente que praticou o ato, mas a corporação se beneficia com a criminalização da pobreza, serve à elite. À medida que o governo começar a ser responsabilizado, a atitude muda. Hoje a própria corporação fiscaliza, ela mesma julga, o agente pratica crime civil e responde como militar e tudo é arquivado. A corporação se defende, é claro”, analisa.
A deputada vê na militarização da Segurança Pública um vício de origem, onde o controle sobre os corpos negros é ensinada e treinada. “A polícia chega no baile funk jogando bomba, dizendo que o lugar é propício para o comércio de drogas. Isso acontece também em boates fechadas em que a polícia sequer tem acesso. Há uma escolha do corpo violentado, por isso é preciso haver também um enfrentamento ao racismo. Mas o estado incentiva isso na própria formação dos agentes de segurança. Dizem, ‘pela cor do cabelo, esse jovem é perigoso’, identificam como inimigo, e inimigo você elimina. A formação da Polícia Militar é muito violenta, entre os próprios agentes. Os castigos corporais, as correções de desvio de conduta são tão agressivas como a abordagem que eles praticam”, diz Andréia de Jesus.
Apagão nos dados sobre violência policial
Se hoje é difícil encontrar dados sobre os abusos das forças policiais – e os existentes estão subnotificados pelo temor da população de denunciar agentes segurança – um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro em setembro pretende simplesmente extinguir das estatísticas esse tipo de violência. O Decreto nº 10.822, institui o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-2030 e não inclui no escopo de monitoramento as mortes causadas pela ação policial. As escolhas ideológicas da gestão Bolsonaro estão explícitas nas novas regras, sobretudo com a invisibilização de crimes como o feminicídio e a não contabilização de mortes em ações policiais. “Ambos foram invisibilizados enquanto categorias de monitoramento. Estão somadas, sem distinção, nos totais homicídios de mulheres e homicídios”, afirma Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para a presidenta da Comissão de Direitos Humanos da ALMG, deputada Andréia de Jesus, não é possível fazer políticas públicas sem dados da letalidade policial. “É mais uma tentativa de blindar a corporação. Como vamos comparar, fiscalizar, saber se temos uma polícia eficiente e eficaz, quem são as vítimas, sem esse monitoramento? É mais uma prática de censura e a aplicação da ditadura de forma direta usando instrumentos democráticos. O poder está na mão de um tirano”, define. Para o deputado Jean Freire, o governo federal quer mascarar dados para esconder a falta de compromisso com a segurança pública. “São números importantíssimos para construir políticas públicas. Tirar esses dados do Plano Nacional de Segurança Pública é maquiar a realidade e proteger somente os policiais, não a sociedade”, critica.