Redução de verbas federais impacta combate à fome na Grande BH

Políticas de segurança alimentar em Ibirité, Nova Lima, Pedro Leopoldo, Ribeirão das Neves e Santa Luzia 

 Créditos: Luiz Santana/ALMG

Por Marcelo Gomes 28/10/2021

O Brasil saiu do mapa da fome em 2014. Agora, menos de uma década depois, o fantasma da fome está de volta. Em razão da crise econômica provocada pela pandemia, cerca de 20 milhões de brasileiros passam fome. 55% da população não se alimentam satisfatoriamente. As informações são da Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, divulgadas pelo jornal Folha de São Paulo.

Diante desse cenário nacional, a Assessoria de Monitoramento dos Poderes Públicos do Nesp procurou saber o que fazem as Câmaras e Prefeituras da Região Metropolitana de Belo Horizonte para combater a insegurança alimentar. Na primeira matéria, focalizamos o monitoramento sobre a população em situação de rua nas três maiores cidades da região da capital. Desta vez, escolhemos analisar outras importantes cidades da região. São elas: Ibirité, Nova Lima, Pedro Leopoldo, Ribeirão das Neves e Santa Luzia. 

Os cortes de gastos nos projetos federais de assistência social 

Os cinco municípios aqui considerados têm sérias dificuldades para prover políticas assistenciais focadas na alimentação. Entre os motivos para isso está a dependência de recursos do governo federal, que vem realizando cortes significativos em ações dessa área. 

No Brasil, conforme a Constituição Federal, é competência da União, dos estados e dos municípios garantir a efetividade do direito à alimentação, em especial para aquelas pessoas que se encontram vulneráveis social e economicamente. Na realidade, quem tem mais condições financeiras de prover a assistência necessária é o governo federal, já que cerca de 55% da arrecadação tributária nacional concentra-se na União. Logo, qualquer decisão tomada no Planalto Central relativa à distribuição de recursos tem o potencial de afetar todas as cidades brasileiras.  

As três maiores ações nacionais em prol da alimentação são o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Todas essas iniciativas são patrocinadas, ao menos parcialmente, pela União.  

De forma resumida, o PNAE é a ação que provê a merenda escolar. Por meio do PAA, os governos municipais compram alimentos da agricultura familiar e os destinam às pessoas em insegurança alimentar. O Pronaf oferece financiamentos da União para os agricultores familiares.  

De acordo com os dados disponíveis no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop),  o investimento do governo federal no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) foi de R$ 3,8 bilhões neste ano. Até o corrente mês de outubro, a quantia é praticamente igual aos valores aplicados, no mesmo período, em 2020.  

O PNAE compõe um conjunto de repasses constitucionalmente obrigatórios, portanto é mais difícil para o governo cortar. No entanto, a inexistência de reajustes em seus valores, quando todos os outros preços aumentaram, acaba por estrangular o programa e sua efetividade é reduzida. 

Por outro lado, os recursos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e para o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) sofreram reduções. Os investimentos em ambos são suscetíveis a diminuições porque não possuem o mesmo status constitucional do PNAE. Desse modo, dependem mais diretamente de decisões governamentais e se ressentem dos efeitos de um governo com escasso apreço por políticas sociais.  

Em relação ao Pronaf, o financiamento da União diminuiu em 33%, aproximadamente, entre 2018 e 2021, desconsiderando a inflação desse intervalo de tempo. Em 2018, foram R$ 26,2 milhões. Neste ano, R$ 17,5 milhões.

Nesse mesmo período, os recursos para o PAA também diminuíram dramaticamente. Tais quedas financeiras já estão sendo sentidas em Minas Gerais. Isso é o que constata o superintendente de Integração e Segurança Alimentar e Nutricional da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social, Henrique Oliveira Carvalho: “tivemos uma redução expressiva do PAA. Solicitamos ao governo federal que revise esses cortes”, afirmou durante a audiência pública na Assembleia de Minas, no dia 14 de outubro.  

O que vem sendo feito para combater a fome nas cinco cidades  

A obtenção de informações junto às prefeituras, por meio de seus serviços de assessoria de imprensa, representa uma dificuldade considerável. Pedidos de informação tendem a ficar sem resposta. Além disso, os portais de transparência não disponibilizam as informações de forma clara e acessível.  

Nas câmaras municipais procuradas, os telefones não funcionavam ou os vereadores estavam inacessíveis. As escassas informações disponíveis são as encontradas na plataforma Fiscalizando com o TCE, a qual mostra dados até agosto deste ano.

Ibirité 

Não foi possível saber a quantidade de pessoas que se encontram em situação de insegurança alimentar em Ibirité. Aliás, não há pesquisas que apontem objetivamente esse dado em Minas Gerais, que permitam compreender a dimensão do problema em cada município.  

De acordo com cálculos feitos pela Assessoria de Monitoramento do Nesp, com base em dados do Ministério da Cidadania, em Ibirité 31,9% da população vive na pobreza e ou na extrema pobreza, situações que tendem a levar os sujeitos à fome. 

A cidade destinou à alimentação R$ 4,8 milhões neste ano, conforme se pode apurar na plataforma do TCE. Entre as cidades analisadas, foi a que mais investiu nessa rubrica.  

Uma análise das informações disponíveis no Portal da Transparência da União, infere-se que o governo federal transferiu neste ano a Ibirité R$ 1,6 milhão, cifra relativa somente ao PNAE. Portanto, a maior parte do dinheiro investido na alimentação saiu dos cofres municipais.  

O Portal da Transparência não mostra repasses de recursos referentes ao PAA para Ibirité.  

Nova Lima  

Das cinco cidades em análise, Nova Lima é aquela em que há menos pessoas expostas à pobreza e à miséria: são 11,7% da população que se encontram nessa situação. A prefeitura disponibiliza cestas básicas aos cidadãos socialmente vulneráveis. No entanto, não há informação sobre a quantidade de atendidos. Neste ano, especificamente à alimentação, foram canalizados R$ 292,2 mil, segundo dados disponíveis na plataforma do TCE. 

Existem em Nova Lima duas ações de transferências de renda. A primeira é o programa Vida Nova, o qual consiste na transferência de R$ 165 por pessoa. Atualmente são 1.069 indivíduos atendidas.  

O Auxílio Emergencial Municipal destina-se aos desamparados em razão da pandemia. “No total, são cerca de 3 mil benefícios concedidos e o valor de R$ 400 pode ser destinado a uma pessoa que mora sozinha na residência ou a uma família”, informou a assessoria de imprensa da prefeitura. A ação se mantém até dezembro. “Além disso, neste ano, o Governo Municipal enviou para a Câmara de Vereadores o Projeto de Lei que dispõe sobre a Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (PMSAN-NL) e institui o Sistema Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de Nova Lima (SISAN-NL)”, disse a prefeitura. 

A União repassou a Nova Lima R$ 1,1 milhão neste ano para o PNAE, de acordo com o Portal da Transparência. Os dados disponíveis não permitem afirmar com certeza que a prefeitura já tenha utilizado integralmente esse recurso.  

Pedro Leopoldo 

Em Pedro Leopoldo, 6,3% da população vive na pobreza ou na extrema pobreza. Ao Nesp não foram informadas as ações realizadas nessa cidade para atender os necessitados. A prefeitura canalizou R$ 1,4 milhão à alimentação. Por meio do PNAE, o Executivo federal transferiu R$ 662 mil. O restante de todo o investimento na área coube à prefeitura arranjar. O Portal da Transparência não mostra transferências ao PAA.  

Ribeirão das Neves  

28% dos habitantes da cidade vivem em situação de pobreza ou de miséria. Apesar desse percentual alarmante da população que vive com algum nível de vulnerabilidade, não há informações sobre as políticas desenvolvidas no município, porque, até a conclusão desta matéria, o poder público não havia dado resposta às questões que lhe foram apresentadas.  

Os dados que seguem foram apurados a partir de informações publicadas em outras fontes de acesso público. Como se observa no sistema do TCE, R$ 235,6 mil foram investidos na alimentação até agosto. Apesar disso, foram transferidos ao PNAE da cidade em 2021, segundo o Portal da Transparência da União, R$ 2,4 milhões. A prefeitura não comentou essa aparente discrepância. A plataforma do governo federal não mostra repasses para o PAA nesse município.  

Santa Luzia 

Dos municípios analisados, Santa Luzia é onde há mais pessoas pobres e extremamente pobres: são 37,7% da população. Segundo a prefeitura, foram disponibilizados durante o período pandêmico sete mil cestas básicas bem como 800 cestas verdes, que englobam somente produtos naturais. A cidade possui um banco de alimentos que atende 100 famílias. Em parceria com o governo federal, a cidade também provê o Kit Proteína, espécie de cesta básica, composta apenas por alimentos proteicos (carnes, ovos, leite…). Foram doados cerca de 5 mil quilos desse kit. A cidade hoje não adere ao PAA, mas, segundo informou a assessoria de imprensa, existe a intenção de integrar esse programa.  

Os dados disponíveis nas plataformas consideradas neste levantamento indicam que, até o mês de agosto, nada foi investido na alimentação. Todavia, a cidade recebeu do governo federal R$ 2,2 milhões para o PNAE. A prefeitura não ofereceu informações que permitissem compreender essa disparidade. 

Insuficiência do padrão atual de investimento  

Somando-se os valores apurados, constata-se que neste ano foram investidos em políticas alimentares pelas prefeituras dos cinco municípios R$ 6,7 milhões. Dividindo-se esse valor pelas 57,3 mil famílias pobres e extremamente pobres existentes em tais cidades, verifica-se que cada grupo familiar receberia, em média, apenas R$ 118,24. Essa quantia é insuficiente para comprar uma cesta básica.  

Não há estimativas do custo da cesta básica em cada um dos cinco municípios. Sabe-se, no entanto, que na capital o preço da cesta básica chegou a custar em setembro R$ 588, segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas Administrativas (IPEAD), do departamento de economia da UFMG.

Os desafios para a superação da insegurança alimentar 

“O que fazer diante desse quadro de fome no Brasil? A primeira coisa é o reestabelecimento do Consea nacional e também fortalecer os conselhos municipais. Os Conseas fiscalizam o cumprimento das ações. Por isso são importantes. E são instâncias de participação popular”, afirmou Renata Martins, presidente do Consea Minas.  

A extinção do Consea foi uma das primeiras medidas tomadas pelo governo Bolsonaro no início de seu mandato em janeiro de 2019. Justamente no momento em que a pobreza extrema voltava aos patamares mais elevados, desmontavam-se nacionalmente a coordenação das políticas de combate à fome. Como sugere Renata Martins, o desafio agora é o de restabelecer os instrumentos e as políticas públicas que, em outros tempos, contribuíram para erradicar a fome no país. 

“O agronegócio tem um falso discurso de que alimenta a população. Não é verdade, 70% do que consumimos vêm da agricultura familiar. Por isso, outro passo importante, seria o fortalecimento desse tipo de agricultura”, completou.  

Ela cita as cozinhas e hortas comunitárias bem como a instalação de banco de alimentos entre as iniciativas que os próprios municípios podem tomar sem ajuda dos estados e da União.  

Uma dura constatação é feita pela professora Andréia Santos, do Departamento de Ciências Sociais da PUC Minas: “Nós estamos passando sede perto de um poço de água. Vivemos em um país que é grande produtor de alimentos, mas nosso abastecimento alimentar está desarticulado. A redução dos estoques de alimentos nacionais (que são usados para combater a insegurança alimentar em momentos como o atual) vai gerar fome daqui para a frente. E eu não vejo políticas de estado sendo feitas”, comentou.