As idas e vindas do Rodoanel
Andrea Castello Branco
15/12/2021
O debate sobre o projeto do Rodoanel ganhou contornos inesperados. E não se trata do polêmico desenho da alça rodoviária, mas da união de praticamente todos os municípios contra o projeto do governador Romeu Zema. O alerta dos ambientalistas e movimentos sociais, quase sempre desconsiderados nas decisões governamentais, dessa vez uniu a prefeita de Contagem, Marília Campos (PT); o prefeito de Betim, Vittorio Medioli (PSD); o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD) – cidades mais atingidas pelas obras -, e também os prefeitos de Igarapé, Santa Luzia e Rio Acima, dentre uma dezena de municípios afetados. Ao que parece, a rejeição ao projeto é uma unanimidade.
Apelidado de “Rodominério”, é consenso entre prefeitos, técnicos e ambientalistas que o percurso proposto terá graves impactos sociais e não é a melhor solução para os municípios envolvidos. Em Betim, as regiões do Alterosas, Petrovale e Imbiruçu serão as mais atingidas no traçado proposto pelo Estado. “São regiões populosas, que teriam bairros divididos ao meio, sem contar o trânsito pesado que seria jogado na área urbana”, disse o secretário de Ordenamento Territorial e Habitacional, Marco Túlio Freitas.
Em Contagem, além de cortar bairros ao meio, o traçado do Rodoanel atinge uma área de preservação ambiental e um dos principais mananciais de água da RMBH, a Várzea das Flores. A prefeita Marília Campos já mandou o recado para o governo: se o projeto não for alterado, o município não dará a anuência que o Estado precisa para começar a obra, mesmo tendo um posicionamento favorável ao projeto.
“Não somos contra a construção do Rodoanel porque nosso anel viário está saturado. Mas não podemos transferir o fluxo viário e causar outros problemas. Além de cortar bairros como o Sapucaias, Nascentes Imperiais, uma região onde vivem cerca de quatro mil pessoas, podemos ainda ter um prejuízo ambiental enorme com consequências para o abastecimento de água de Betim, Contagem e Belo Horizonte”, alerta Marília Campos. As duas prefeituras defendem um traçado alternativo, circundando a APA, que exigiria menos recursos e reduziria os impactos socioambientais.
Por outro lado, há municípios que reclamam que não serão beneficiados pela mega obra – em especial aqueles atingidos pelo rompimento da barragem da Vale do Córrego do Feijão. O Rodoanel será feito com parte do valor do Acordo de Reparação com a Vale – como compensação pelo crime em Brumadinho. Contudo, nenhum dos municípios do Médio Paraopeba está sendo beneficiado com o modelo apresentado pelo governo do estado. Na proposta alternativa, essas cidades seriam contempladas. “A cidade de Mário Campos foi muito atingida pelo rompimento. Perdemos 20 vidas na tragédia. Além disso, temos um tráfego intenso de veículos pesados de minério. Então, é preciso buscar propostas para que toda a região seja beneficiada”, defende o prefeito Anderson Ferreira (PP).
Para a deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), a falta de transparência é o maior problema no projeto do Rodoanel. “Há uma grande diferença entre o interesse público e o interesse privado. O traçado proposto pelo governo do estado é para atender interesses privados. A falta de transparência é uma marca desse projeto, as consultas e audiências são para cumprir formalidades, não tem escuta da população”, critica a deputada, que propõe uma comissão da ALMG para acompanhar todo o processo.
Críticas e suspeitas
O que não falta é polêmica no projeto do Rodoanel. E, mais uma vez, isso não se limita ao traçado que corta cidades ao meio. No último dia 26, uma Reunião Especial convocada pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais e conduzida pessoalmente pelo presidente da Casa, Agostinho Patrus, com a presença de prefeitos da Região Metropolitana, mostrou o tamanho da rejeição. Durante quase três horas de debate, os argumentos do secretário de Estado de Infraestrutura e Mobilidade (Seinfra), Fernando Marcatto, foram rebatidos um a um.
A denúncia mais contundente foi a do prefeito de Betim, Vittorio Medioli, que apresentou um fluxograma onde demonstrou que grupos econômicos que exploram outras rodovias brasileiras, tendo por trás grandes corporações multinacionais, teriam se instalado por meio de prepostos na cúpula da Seinfra para ganhar a futura concessão da rodovia. A diferença de custo entre o trajeto original e o proposto pelos municípios da RMBH, segundo ele, comprova que a obra atenderia aos interesses de mineradoras e grandes multinacionais do setor de construção de estradas. A proposta alternativa do Rodoanel Metropolitano custaria quase R$ 2 bilhões a menos, mesmo sendo mais extenso e com três faixas de pista.
Pelos cálculos da Secretaria de Estado de Infraestrutura e Mobilidade (Seinfra), o custo da obra total do Rodoanel, com 100,6 km de extensão, é de R$ 5 bilhões. Usando os mesmos critérios utilizados pela Seinfra, os municípios elaboraram um estudo em que a extensão é ampliada para 112,9 km e o custo é reduzido em R$ 1,6 bilhão. Já pelos critérios praticados por diversas prefeituras nas obras que realizam, o Rodoanel teria um custo ainda menor. Ficaria em R$ 2,9 bilhões, uma redução de 41% no preço apresentado pelo Estado.
Alexandre Kalil, também presente na audiência promovida pela ALMG, questionou a capacidade técnica da Seinfra, que segundo ele, está usando uma metodologia errada. “Estamos discutindo traçado e eles já estão falando em valor de pedágio. Primeiro tem que fazer anteprojeto, projeto, detalhamento, planilha e depois a privatização. O projeto de verdade está guardado, ninguém conhece”, criticou.
O pedágio é um capítulo à parte nessa novela. O Rodoanel é um modelo de parceria público-privada em que a concessionária fará um aporte de R$ 2 bilhões e poderá explorar o pedágio da rodovia por 30 anos. A tarifa está estimada em R$ 0,35 por km/eixo, o que daria um custo de R$ 35,00 para um carro de passeio, por exemplo, fazer o trajeto de 100 km. A título de comparação, na rodovia Fernão Dias o preço é 11 vezes menor: R$ 0,033 por km/eixo.
Pela projeção de fluxo de veículos feita pelo governo do estado – e considerada subestimada por engenheiros de tráfego consultados pelas prefeituras-, o ganho anual da concessionária será de R$ 1,7 bilhão. O que significa que em 14 meses o investimento estará totalmente pago. “O valor que estão querendo cobrar é três vezes maior que o pedágio mais caro do país. Isso vai inviabilizar o transporte local, dos moradores, que terão de pagar um preço alto que vai diretamente para os cofres das empreiteiras”, alertou o prefeito de Betim, fazendo coro às críticas de Alexandre Kalil.
Projeto alternativo
O trajeto sugerido pelos municípios também reduz o gasto com desapropriações, uma vez que deixaria de passar por centros urbanos com grande adensamento populacional. O recurso previsto no projeto original do Rodoanel é de R$ 1,4 bilhão, enquanto o projeto dos municípios é de R$ 231 milhões, seis vezes menor.
Outra diferença importante entre os dois projetos é a capacidade da rodovia. Hoje o Anel Rodoviário, mesmo com três pistas, está saturado e não oferece segurança para quem precisa trafegar por ele. No traçado divulgado pelo governo do estado seriam construídas duas pistas por um valor de R$ 405 milhões; já no projeto alternativo são consideradas três pistas de cada lado, a um custo de R$ 362 milhões. “Propusemos três pistas, pois, com duas, o Rodoanel já nasceria saturado, com o trânsito pesado. Mesmo com um traçado mais extenso e com mais faixas de trânsito, nosso projeto custaria R$ 2 bilhões a menos que o do governo por prever menos desapropriações e execução mais rápida”, explicou a prefeita Marília Campos durante a audiência na ALMG.
Na tentativa de mediar o conflito, o presidente da Assembleia, Agostinho Patrus, tomou a iniciativa de encaminhar um ofício ao Governo de Minas pedindo a suspensão do processo de construção do Rodoanel até que o projeto seja avaliado por especialistas independentes. “Existem ainda pontos obscuros na proposta. Não queremos inviabilizar o Rodoanel, mas o interesse público deve sempre estar à frente. A Assembleia de Minas se propõe a auditar todos os estudos, pois somente assim poderemos dar o aval a essa obra tão importante para Minas Gerais”, ressaltou Agostinho Patrus.
Meio Ambiente em risco
O traçado do Rodoanel também é duramente criticado por ambientalistas. Serão extintas 40 nascentes e as Áreas de Proteção Ambiental de Vargem das Flores, Serra da Calçada e Parque do Rola Moça, gerando um grande impacto em mananciais essenciais para o abastecimento de água da Região Metropolitana. No caminho do Rodoanel também estão sítios arqueológicos e comunidades quilombolas que guardam um patrimônio cultural intangível. Em Santa Luzia, o território místico do Cemitério dos Escravos e as comunidades quilombolas de Pinhões, Bicas e Macaúbas, serão diretamente impactadas.
“Na primeira proposta, o Rodoanel passaria em cima do Cemitério dos Escravos, mas como ele tem tombamento municipal e estadual, colocaram a via a 200 metros de distância. O que não muda nada, porque ele vai ficar dentro da faixa de domínio da estrada, um ambiente místico que vai ser convertido numa praça urbana. O ambiente rural vai ser descaracterizado, a estrada de terra vai passar a ser um acesso à MG-020”, conta Glaucon Durães, integrante do Movimento Salve Santa Luzia.
“É inestimável o valor cultural, ambiental e étnico dessa região. Infelizmente, a audiência pública realizada em Santa Luzia foi uma reunião esvaziada em que os gestores foram lá para fazer propaganda e não levaram em conta as sugestões da população. Não apresentaram o relatório de danos ambientais, mas nós, moradores, conhecemos o território e constatamos o potencial de destruição de 18 nascentes e de área de inundação natural do Rio das Velhas”, relata Glaucon.
Ele conta que, ao contrário dos municípios da alça Sul, os prefeitos da Alça Norte não se mobilizaram para aprimorar o projeto, e pede ajuda para que a história de Santa Luzia não seja apagada. “Para nós seria muito importante ter o apoio da Arquidiocese de Belo Horizonte para preservar o Convento de Macaúbas e a Serra da Piedade. Porque esse Rodoanel vai afetar diretamente esses santuários e impulsionar a mineração na região. Também seria muito bom ter a ajuda dos professores da PUC para nos ajudar a catalogar o que tem aqui e fazer os estudos de impacto”, diz.
Mesmo o traçado alternativo apresentado pelos prefeitos ainda carece de melhorias, segundo Simone Bottrel, integrante da organização não-governamental Arca Amaserra. “Ele também impacta o Rola Moça porque está bem em cima do Manancial Catarina, que responde pelo abastecimento do Barreiro, Brumadinho, Nova Lima. Temos de arrumar outra solução, mas acredito que, com diálogo, vamos chegar a um ponto em comum”, diz.
Já o Fórum Permanente São Francisco (FPSF), um grupo da sociedade civil, defende que a melhor solução para os problemas viários do entorno de Belo Horizonte e da Região Metropolitana é a reestruturação do atual Anel Rodoviário Celso Mello Azevedo, aliada à aceleração das obras de ampliação da BR 381 em seu trecho que vai de Belo Horizonte até o trevo de Caeté. Em documento público lançado em novembro, o grupo reivindica que a reestruturação do atual Anel Rodoviário seja feita com os recursos obtidos pelo Governo de MG por meio do acordo com a Vale. “Isso evitará a construção de um novo Rodoanel e, consequentemente, todos os impactos negativos que essa obra acarretaria ao longo do seu percurso”.