OPINIÃO: Santa Luzia, o perverso modelo de gestão municipal neoliberal para a RMBH
Por Glaucon Durães da Silva Santos – 24 de fevereiro de 2022
Este texto é uma contribuição gentilmente ofertada ao Nesp pelo sociólogo Glaucon Durães da Silva Santos, que integra nossa rede de colaboradores. Glaucon é morador de Santa Luzia, onde atua em pastorais da Igreja Católica e em diversos movimentos sociais. Tornou-se mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas (2021) e tem o doutorado em andamento no mesmo campo. Sua atividade de pesquisa se concentra nas áreas de Sociologia da Religião e de Sociologia Política.
Os textos opinativos publicados neste site obedecem ao propósito de estimular a reflexão sobre a conjuntura política e sobre outros aspectos de interesse social, mas não representam a opinião do Nesp, da PUC Minas e/ou da Arquidiocese de Belo Horizonte.
O município de Santa Luzia, localizado no vetor norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), se tornou, após a eleição municipal temporona de 2018, e sobretudo após as eleições municipais de 2020, o perverso modelo de gestão neoliberal na RMBH, impulsionado pelas agendas político-econômicas antipopulares e antiecológicas dos governos dos presidentes da República Michel Temer (MDB), Jair Bolsonaro (PL) e do governador de Minas Gerais Romeu Zema (Novo).
A reeleição do então prefeito Christiano Xavier (PSD) – delegado da Polícia Civil – e do seu vice-prefeito Luiz Sérgio Ferreira Costa (PSD) – pastor evangélico – à prefeitura de Santa Luzia em 2020, sagrados com 71,98% dos votos válidos (equivalente ao total de 74.920 votos), veio acompanhada de uma das mais significativas derrotas do campo político da esquerda na história da cidade. Isso porque além de as candidaturas declaradamente de esquerda à prefeitura (Conceição Nunes Preta do PT, César Lara Diniz do PC do B e Cléber Rodriguez do PSOL) terem alcançado, juntas, apenas 5,24% dos votos válidos, esse campo político perdeu as suas duas únicas cadeiras na Câmara Municipal, a saber, Suzane Duarte Almada do PT e César Lara Diniz do PC do B. Dessa forma, a atual legislatura da Câmara Municipal de Santa Luzia é composta por 17 parlamentares de direita e centro-direita, dos quais 3 vereadores são do PSD, 2 são do Avante, 2 são do PSC, 2 são do Pros e os demais 8 vereadores são do PMN, PL, PSL, PP, PDT, PSB, PV e Republicanos.
A derrota do campo da esquerda no referido pleito facilitou e consolidou a coalisão, à direita, entre a prefeitura, governada pelo PSD, e a Câmara Municipal, presidida pelo vereador Wander Carvalho, também do PSD. Dessa forma, a agenda neoliberal nacional e estadual, encontrou em Santa Luzia, um campo aberto e propício para se desenvolver livremente, sem maiores dificuldades políticas, sobretudo devido ao enfraquecimento da capacidade do exercício democrático da oposição.
Santa Luzia, berço liberal de Minas Gerais
É preciso lembrar que, desde a revolta liberal de 1842, findada em Santa Luzia, os liberais brasileiros, sobretudo os de Minas Gerais, ficaram conhecidos pela alcunha de os Luzias. Isso porque os insurgentes de Teófilo Ottoni encontraram em personalidades luzienses como o 1° Barão de Santa Luzia Manoel Ribeiro Viana e o pároco da Matriz de Santa Luzia Manoel Pires de Miranda, apoio para guerrear contra as tropas legalistas do Barão de Caxias. O próprio Imperador Dom Pedro II ao visitar um colégio luziense em 1881, na ocasião de sua viagem por Minas Gerais, registrou em seu diário não ter gostado da educação ofertada na então vila, sendo alertado por um dos que o acompanhavam que se tratava de educação de liberais. Destarte, o liberalismo e o seu ideal de liberdade individual estão entranhados na história de Santa Luzia, junto ao conservadorismo, tendo orientado a vida política luziense e impulsionado, desde o final do século XIX, os vários processos de urbanização, modernização, industrialização e periferização experimentados na cidade.
Entre meados do século XIX e no decurso do século XX, o campo político conservador de Santa Luzia era liderado pelas famílias da oligarquia agrária Diniz e Gonçalves (escravistas e descendentes de escravistas) da antiga Sesmaria de Bicas. O seu grande representante foi Modestino Carlos Gonçalves Moreira, parlamentar no extinto Senado Mineiro e primeiro prefeito municipal de Santa Luzia em 1930. Já o campo político liberal da cidade era liderado pela família Teixeira da Costa (escravista e descendentes de escravistas), formada por prestadores de serviço de classe média alta (médicos, advogados e jornalistas). O seu grande representante foi o também parlamentar do Senado Mineiro Manoel Teixeira da Costa.
Santa Luzia, laboratório neoliberal de Minas Gerais
Voltando o nosso olhar para o presente, Santa Luzia se tornou o primeiro município da RMBH a regulamentar, no âmbito da Administração Pública municipal a Lei Federal n°13.874, denominada Lei da Liberdade Econômica, que havia sido sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em 20 de setembro de 2019 e instituída em Minas Gerias pelo Decreto Estadual n° 48.036, sancionado pelo governador Romeu Zema em janeiro de 2021.
A expressão “liberdade econômica” foi desenvolvida pela organização conservadora estadunidense The Heritage Foundation, a partir dos seus estudos de políticas públicas de Estado mínimo, os Mandate for Leadership, publicados a partir de 1981 no primeiro governo do presidente neoconservador Ronald Reagan (PR). Inspirando-se nos referidos estudos, o Workshop Minas Livre para Crescer, promovido pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais em 19 de novembro de 2020, definiu liberdade econômica como “o meio pelo qual as pessoas dentro da sociedade podem agir de forma livre, com a mínima intervenção do Estado para realizar negócios voluntariamente em busca do aumento do seu bem estar”. Ou seja, é uma reabilitação contemporânea do já fracassado liberalismo econômico clássico do século XVIII, desta vez travestido de nacional-populismo.
Um dos carros chefes da Lei de Liberdade Econômica é justamente a dispensa da expedição de alvarás de funcionamento para atividades consideradas de baixo risco, o que tem impacto direto, como veremos a seguir no caso de Santa Luzia, sobre a desburocratização ou afrouxamento das regulamentações jurídicas de proteção social, urbana e ambiental previstas no Estudo de Impacto de Vizinhança e no Plano Diretor Participativo. Dessa forma, podemos compreender a Liberdade Econômica como um processo de legalização político-jurídica da já existente realidade de precariedade e irregularidade de várias atividades econômicas que afetam negativamente as cidades mineiras e brasileiras.
A metodologia da gestão neoliberal em Santa Luzia
A prefeitura de Santa Luzia assinou, em 10 de maio de 2021, o Decreto n° 3.796, que regulamenta, no âmbito da administração pública do Poder Executivo, a já mencionada Lei Federal n°13.874, que institui a Declaração de Direito de Liberdade Econômica, estabelece garantias de livre mercado e análise de impactos regulatórios.
No dia 3 de junho de 2021, quase um mês após a assinatura do Decreto da Liberdade Econômica pelo prefeito de Santa Luzia, o prefeito de Belo Horizonte Alexandre Kalil (PSD) vetou integralmente o Projeto de Lei da Liberdade Econômica aprovado pela Câmara Municipal da capital mineira. O prefeito alegou em seu veto que o projeto de lei apresenta pontos inconstitucionais, que ferem o pacto federativo e é contrário ao interesse público por apresentar potencialidade de causar graves danos ao meio ambiente, à mobilidade urbana e ao patrimônio público e urbanístico.
O pioneirismo célere da implementação da Lei da Liberdade Econômica em Santa Luzia reflete o modelo de gestão empresarial adotado pelo prefeito Chritiano Xavier (PSD) e pelo seu secretário de desenvolvimento econômico Leandro Santos (Novo), após a eleição temporona de 2018. Naquele mesmo ano, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (SMDE) criou o Portal Empreender sem Complicação e realizou a 1° Feira de Empreendedorismo da Cidade de Santa Luzia com o objetivo de gerar um ambiente municipal propício para a oferta e procura de oportunidades de negócios. O evento representou, simultaneamente, um primeiro aceno favorável do prefeito recém-eleito ao empresariado, um laboratório político-econômico experimental e uma oportunidade de ampliação de parcerias com os setores públicos e privados para a elaboração de projetos futuros.
No ano seguinte, 2019, as referidas parcerias deram os seus primeiros frutos. Não farei, aqui, uma análise das medidas administrativas realizadas pela prefeitura de Santa Luzia, mas tão somente as mapearei e indicarei a sua fonte de acesso para que o campo da esquerda luziense possa se reunir para proceder a devida análise.
Em janeiro de 2019 foram sancionadas as Leis Municipais n° 4.041 e n° 4.042 que criam o Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico (COMDE) e o Fundo Municipal de Desenvolvimento Econômico (FMDE). Já em 16 de abril, foi sancionada a Lei n° 4.0734 (Lei de Incentivos Fiscais). Essas três leis foram fundamentais para o fortalecimento da capacidade de ação do já referido modelo de gestão empresarial neoliberal adotado em 2018.
Em 2020 foram sancionados os decretos municipais n° 3.590 (01/07/2020), n° 3.630 (21/08/2020) e n° 3.733 (24/02/2021) que dispõem sobre a revisão do Plano Diretor Participativo de Santa Luzia, Lei n° 2699 de 2006, nomeia os integrantes do Núcleo Gestor de Acompanhamento da Revisão e da sua Equipe Técnica etc. No dia 14 de outubro de 2020, foi inaugurado o Espaço Plano Diretor, físico (na sala 30 do Centro Administrativo Municipal) e virtual (no Portal Empreender).
Na primeira reunião do Núcleo Gestor de Revisão do Plano Diretor Municipal, o secretário municipal de desenvolvimento econômico Leando Santos (Novo) apresentou aos demais integrantes, os trabalhos realizados pela sua secretaria no âmbito do Projeto Desenvolver (relacionado ao Portal Empreender). Afirmou ainda que esses estudos servirão de base para a Revisão do Plano Diretor. O que aponta uma tendência de alinhamento dos trabalhos da revisão do Plano Diretor de Santa Luzia com a agenda neoliberal de desregulamentação das proteções sociais e ambientais promovidas pela prefeitura e pelos trabalhos da secretaria municipal de desenvolvimento econômico entre os anos de 2018 e 2020.
A própria condução da atual revisão do Plano Diretor Participativo de Santa Luzia é um exemplo contundente do alinhamento neoliberal entre os governos do prefeito Christiano Xavier e do governador Romeu Zema. Na reunião do Núcleo Gestor da revisão, que tratou sobre os impactos da construção de 13 quilômetros da Alça Norte do Rodoanel sobre Santa Luzia, novamente, como já ocorrera na Audiência Pública do dia 26 de fevereiro de 2021 na cidade, o poder público municipal se manteve passivo frente aos projetos estaduais de atravessar áreas de importância ambiental e cultural do território luziense com a referida rodovia de grande porte.
Na prática, a revisão do Plano Diretor de Santa Luzia, realizada com o apoio técnico da Agência Metropolitana do Governo de Minas, é uma manobra neoliberal de viabilização irrestrita da construção do Rodoanel na cidade e da expansão da especulação imobiliária predatória no território municipal. Aliás, em diversas ocasiões o prefeito Christiano Xavier afirmou que mais de 70% do território de Santa Luzia ainda não foi explorado e que, portanto, é preciso deixar o município interessante para atrair investidores e empreendimentos. Essa realidade é agravada pelo fato da inexpressiva representatividade e participação de instituições e indivíduos da classe trabalhadora na revisão do Plano, em detrimento da forte representatividade e participação de instituições e indivíduos da classe empresarial e dos sindicatos patronais.
Foi sancionada também, no ano de 2020, a Lei n° 4.158 que altera, acrescenta e revoga dispositivos da Lei n° 3.944 de 4 de julho de 2018 que dispõe sobre o instrumento do Estudo de Impacto de vizinhança e sua exigência no município de Santa Luzia. É preciso lembrar que a referida lei de 2018 foi elaborada, por exigência do Ministério Público, frente
ao crescimento desordenado da especulação imobiliária na cidade à época, e por causa da ausência de uma regulamentação municipal específica. Seu processo de elaboração foi marcado por forte pressão dos setores empresariais.
Em todo caso, é fundamental que o campo político da esquerda luziense se reúna o quanto antes para acompanhar, discutir e analisar os impactos legais, sociais, ambientais, econômicos e culturais da atual agenda neoliberal promovida pela prefeitura e pela Câmara Municipal. Tendo em vista que essa agenda tem sido fomentada a nível regional pelo governo de Minas, se faz imprescindível que o campo da esquerda luziense dialogue também com os seus pares nos outros municípios da RMBH de forma a articular a construção de novos projetos de cidade. Projetos estes que promovam a dignidade da pessoa humana, o direito à cidade, a função social da cidade, a sustentabilidade socioambiental, o respeito e a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento econômico-social responsável.
Excelente análise! E como bem aponta o autor, as classes dirigentes alinhadas à direita são os principais fomentadores dos problemas sociais e ambientais das nossas cidades. São míopes, egoístas e somente pensam nos seus próprios interesses.
Nossa cidade é o reflexo no espelho dos atores liberais do passado e que se reconhecem nos neoliberais de hoje. Nada mudou, só o penteado e o figurino.