Número de famílias sem casa cresce em Belo Horizonte, apesar de novos empreendimentos imobiliários
Publicado em 22/04/2022
Pesquisa feita pela Assessoria de Monitoramento dos Poderes Públicos do Nesp revela, que entre abril de 2015 e fevereiro deste ano, a Prefeitura de Belo Horizonte aprovou a construção de 26.506 novas unidades residenciais. Contudo, dados do IBGE mostram aumento na quantidade de famílias sem casa própria na capital. O Nesp investigou as causas dessa incongruência.
Em 2016, 50,2 mil famílias em Belo Horizonte não tinham casa. Esse número cresceu para quase 56 mil em 2019. Essas e outras informações sobre o déficit habitacional foram produzidas pelo IBGE. A organização delas coube à Fundação João Pinheiro (FJP), que gentilmente cedeu os dados compilados. A FJP é referência nacional no cálculo e estudo do déficit.
Esse déficit é a quantidade de lares apropriados que faltam para atender toda a população de uma localidade. Ele pode ser quantitativo ou qualitativo. O quantitativo, em termos simples, são quantas casas faltam para atender toda a sociedade. O qualitativo exprime o número de domicílios precários.
Moradia inapropriada
Sobre o déficit qualitativo, de 2019, conforme a FJP, há na capital 95,7 mil lares inapropriados. São moradias desprovidas de, por exemplo, abastecimento, esgotamento, teto, entre outras coisas. Geralmente, tal tipo de casa concentra-se em vilas e favelas.
A maior precariedade nos lares se refere às condições estruturais. 60,2 mil domicílios na capital apresentaram em 2019 algum problema na estrutura, como danos nas paredes e no teto. A segunda inapropriação é a falta de condições para o armazenamento de água. São 44,3 mil lares nessa situação.
20, 6 mil casas não possuem ao seu redor infraestrutura urbana adequada, como ruas asfaltadas, postes de luzes e atendimento do transporte público.
Aluguel é o principal componente do déficit quantitativo de BH
Quem mora de aluguel integra o déficit habitacional porque não possui a propriedade do imóvel. Majoritariamente, a população belo-horizontina reside em lares próprios, conforme estudos recentes. Todavia, é significativa a parcela dos que moram em imóveis alugados.
Na capital, 45,2 mil domicílios são alugados. Isso corresponde a aproximadamente 80% do déficit quantitativo. Já em 2016, tal número era de 33,1 mil. O aumento foi de 12 mil famílias que passaram a morar de aluguel.
Quem entra na composição do déficit em Belo Horizonte?
De acordo com o pesquisador e professor da FJP, Frederico Poley, a “cara” do déficit é majoritariamente feminina e não branca. Ou seja, a grande parte dos domicílios inseridos no déficit total (o quantitativo e qualitativo) são chefiados por mulheres pardas ou negras. Além disso, segundo ele, quase 90% das famílias nessa condição habitacional auferem até três salários mínimos. São, portanto, pessoas pobres ou de baixa renda. “E em sua maior parte essas pessoas estão em bairros de zonas periféricas” completou.
É sabido: no Brasil os cidadãos que conseguem acessar o mercado de imóveis são os de classe média, com renda fixa, e os mais ricos. Afinal, o principal requisito para um financiamento ou consórcio é a capacidade de pagamento.
Dados do Ministério da Cidadania, de janeiro deste ano, mostram que em Belo Horizonte 522,2 mil pessoas vivem com renda mensal de até meio salário mínimo (R$ 606). Isso significa cerca de 21% da população total. Esse contingente varia de pessoas extremamente pobres até as de baixa renda. Logo, em princípio, somente com seus rendimentos, esse percentual de cidadãos praticamente não pode acessar o mercado imobiliário.
Segundo o Sindicato das Indústrias da Construção Civil no Estado de Minas Gerais (Sinduscon-MG), o tipo de residência mais vendido em Belo Horizonte é o de padrão dito “econômico”, cujo valor não ultrapassa R$ 215 mil. Em 2020, por exemplo, dos 3.319 apartamentos vendidos, 28,5% foram desse modelo, o mais barato.
Simulação no site da Caixa Econômica, maior banco de financiamento imobiliário, ilustra a dificuldade dos mais pobres em adquirir um imóvel. Uma hipotética família de baixa renda, de quatro integrantes, aufere R$ 2.424 mensalmente e pretende adquirir um apartamento novo de R$ 215 mil. O simulado, apenas preliminar, mostrou que as prestações iniciais do imóvel seriam cerca de R$ 700 mensais. Aproximadamente 29% da renda estaria comprometida, portanto. Isso levando em conta que a família deveria dar R$ 149 mil de entrada. Se é difícil um financiamento desse para os de baixa renda, aos mais pobres é praticamente impossível.
Causas para o déficit
De acordo com o professor e pesquisador em arquitetura e urbanismo, Eduardo Bittencourt, dois são os principais motivos para o déficit. “O primeiro é a lógica de produção do espaço feita por meio de relações de mercado. Então, você tem acesso à cidade de acordo com a sua renda. Isso vale para qualquer cidade ocidental, de matriz capitalista. Aí, o que vemos com isso é um monte de gente que não tem direito à habitação e que tenta encontrar alternativas de moradia, por exemplo, em favelas ou em ocupações”, disse.
A lógica de mercado opera da seguinte forma: cada canto da cidade possui um preço; as relações de mercado (oferta e demanda) ditam esse valor. Contemporaneamente, a oferta de moradias cabe (em geral) às construtoras, que adquirem um estoque de terras por um preço baixo, revendido por valores bem maiores. A elevação de preço em determinada porção da cidade tende a impulsionar os valores dos demais terrenos, o que complica ainda mais o acesso à moradia por parte dos mais pobres.
“Muito se fala que faltam terrenos em Belo Horizonte. As pessoas não conseguem acessar a terra não é por causa da falta delas, sim por causa do preço delas”, argumentou o professor.
Na direção contrária à avaliação do docente, representantes do setor imobiliário de Belo Horizonte expressam preocupação quanto à escassez de terrenos na cidade. “Diferentemente de cidades como São Paulo e Rio, BH tem um território muito pequeno, não tem mais para onde crescer”, disse em entrevista à revista Exame o vice-presidente do Sinduscon-MG, Renato Michel. Segundo ele, o mercado em BH já não está mais conseguindo atender à demanda.
Seja como for, a construção civil na capital está a todo vapor. O Nesp apurou que entre abril de 2015 a fevereiro deste ano, foi aprovada a construção de 26.506 novas moradias. Foi calculado ainda o espaço dos imóveis construídos ou por construir: 5,5 quilômetros quadrados, o que corresponde a duas vezes e meio o tamanho do Centro de BH. Esses dados foram apurados no banco de informações da Secretaria de Política Urbana da Prefeitura da Capital. Vale ressaltar que, como também visto no início do texto, aumentou em aproximadamente 6 mil, entre 2016 e 2019, o número de famílias sem lar.
Além do número de novas casas, há na cidade grande estoque de imóveis (não apenas residenciais) ociosos. Pesquisa conduzida por Eduardo Bittencourt a pedido da Câmara Municipal mostra haver cerca de 64 mil edificações vazias em BH. Se essa quantia fosse destinada àqueles inseridos no déficit habitacional quantitativo, sobrariam ainda 8 mil propriedades sem uso.
“Por que falta moradia? Nos últimos anos o que mais vimos foram bairros novos, fora os imóveis vazios. A falta acontece justamente porque o mercado imobiliário é deixado livre, sendo que esse mercado tem uma função social”, analisou Eduardo. Ainda de acordo com o pesquisador, o segundo motivo para o déficit são as ações do poder público, que perpetua a lógica de mercado.
O Fundo de Garantia de Tempo do Serviço (FGTS) é uma poupança única de todos os trabalhadores formais da iniciativa privada. Entre 2011 e fevereiro de 2022, R$ 935 bilhões entraram nessa poupança. Esse dinheiro pode ser sacado em determinadas ocasiões definidas pelo governo federal. Mas, o uso não se restringe a isso.
Em razão de ser muito dinheiro acumulado ao longo dos anos, o FGTS investe em habitação, infraestrutura urbana, saneamento e saúde, entre outras áreas. Em 2021, por exemplo, dos R$ 68 bilhões que entraram no fundo, 82,9% foram investidos em habitação. Os dados são do Ministério do Desenvolvimento Regional.
Não há efetivo controle por parte dos trabalhadores sobre os recursos investidos em habitação. O dinheiro é transferido ao mercado financeiro, que dita, por regras próprias, quem serão os beneficiários. Geralmente, são as grandes construtoras. “Grande volume da riqueza social, o FGTS, vai para a produção do mercado. Nós, enquanto sociedade, decidimos assim. E aí, já sabemos quem consegue acessar esse mercado. O monopólio para explorar o valor terra pertence ao mercado. E nós colocamos dinheiro nisso”, pontuou Eduardo Bittencourt.