Mineração ameaça comunidades e meio ambiente apesar da lei “Mar de Lama Nunca Mais”

Legislação em vigor desde 2019 é descumprida pelo governo

Destruição ambiental causada pelo estouro da barragem da Vale, em Brumadinho. Fonte: Luiz Santana/ALMG

POR: Assessoria de Monitoramento dos Poderes Públicos.

Redação: Marcelo Gomes com colaboração de Ana Camila Moreira – em 19/05/2022

A atual legislatura da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) se iniciou com a sociedade de luto. Os trabalhos começaram oito dias após a tragédia/crime de Brumadinho, onde o rompimento de uma barragem da Vale matou cerca de 270 pessoas. Sem contar os danos sociais e ambientais. Movimentos Sociais e Ministério Público estadual viram nesse contexto a oportunidade de pressionar os parlamentares para que tornassem a legislação minerária mais rigorosa. E a pressão deu certo.

Em 22 de fevereiro de 2019, por unanimidade, os deputados aprovaram o que hoje é a Lei 23.291, conhecida como “Mar de Lama Nunca Mais” ou novo “Marco da Mineração”.

Nos seus 28 artigos, tal lei aumenta o rigor quanto à segurança das barragens, estruturas fundamentais para a mineração. Elas servem para estocar todo o “lixo” produzido no processo de extração, tecnicamente conhecido como rejeito. Em suma, a norma se baseia em três pontos fundamentais:

1 – Proibição de construção de barragens quando houver casas muito próximas ao empreendimento;

2 – É proibido construir barragens se houver outros métodos de armazenagem de rejeitos menos danosos ao ambiente;

3 – As mineradoras são obrigadas a constituir uma espécie de caução para cobrir possíveis danos de suas atividades.

Outra novidade trazida pela lei refere-se à proibição de construção de barragens a montante. Nesse tipo de barramento, a estrutura que a sustenta são os próprios rejeitos. Segundo especialistas, é o modelo mais utilizado em Minas Gerais, é o mais barato de ser construído e o menos seguro.

A lei também estipula que em até três anos de sua vigência as mineradoras devem descomissionar as barragens erguidas pelo método a montante. As empresas devem cumprir o prazo até este ano, portanto. Descomissionar ou descaracterizar é acabar com as estruturas.

Deputados “engavetaram” o texto por quase quatro anos

Em 5 de novembro de 2015 a barragem da Samarco desabou em Mariana. Foram 19 mortes e houve um enorme estrago no meio ambiente. Muitas famílias perderam suas casas e estão desabrigadas até hoje. Diante da tragédia, movimentos sociais e integrantes do Ministério Público diagnosticaram que o ocorrido se deve à falta de rigor da legislação.

Assim, decidiram elaborar um projeto de lei. 56 mil cidadãos respaldaram a proposta por meio de um abaixo-assinado. Em 6 de junho de 2016 a iniciativa foi protocolada na Assembleia de Minas. Deputados governistas e da oposição prometeram celeridade na tramitação da proposta. Porém, o contrário ocorreu.

Simultaneamente ao recebimento do texto popular, havia na Assembleia a Comissão Extraordinária das Barragens, criada para apurar o acontecido em Mariana e que sugeriu uma proposta de lei. Ambas as proposições se chocaram. Isso porque, em resumo, o projeto dos cidadãos era mais rigoroso com as mineradoras em relação aos dos parlamentares.

Análise do observatório ambiental Leia.org, feita na época, mostrou as divergências entre o texto de iniciativa popular e o dos deputados. Por exemplo, a primeira englobava todas as barragens de todas as empresas atuantes no estado. Já a dos deputados apartava algumas empresas. A dos parlamentares ainda permitia que as mineradoras não utilizassem métodos mais seguros de construção de barragens, como o a jusante ou o empilhamento a seco.

O projeto popular ficou parado até 2018. Em julho daquele ano, o deputado João Vítor Xavier (na época no PSDB e hoje no Cidadania) apresentou um novo texto, incorporando as disposições da proposta cidadã.

Todavia, na comissão de Minas e Energia, sua proposição foi negada, graças aos deputados Gil Pereira (PP), Tadeu Martins Leite e Thiago Cota, ambos do MBD. Para o três, a proposta de João Vítor inviabilizaria a mineração no estado. Por consequência, as demandas populares foram novamente “engavetadas”. Contudo, após grande pressão da sociedade, gerada pela tragédia de Brumadinho, elas “ressuscitam”.

Em 22 de fevereiro de 2019, os 65 parlamentares presentes no Plenário da Assembleia aprovam a proposta – inclusive os que outrora a rejeitaram. E três dias depois o governador Romeu Zema (Novo) sancionou o documento, transformando-o em lei.

O desafio é cumprir a norma

A lei abarca uma série de reivindicações socais feitas por décadas. Agora, a luta é pelo seu cumprimento. Nos últimos três anos, ao menos em duas ocasiões, ela foi descumprida.

Primeiro, as mineradoras não descomissionaram suas barragens a montante até o momento. Diz o § 2 do Artigo 13: “O empreendedor responsável por barragem alteada pelo método a montante atualmente em operação promoverá, em até três anos contados da data de publicação desta lei, a migração para tecnologia alternativa de acumulação ou disposição de rejeitos e resíduos e a descaracterização da barragem, na forma do regulamento do órgão ambiental competente”.

Segundo apuração da Assessoria de Monitoramento dos Poderes Públicos, as informações quanto à quantidade de barramentos a montante e quais deles foram descaracterizados são imprecisas. Mas, conforme a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, são 47 barragens ainda de pé. E no estado há, de acordo com informações não oficiais, 50 estruturas erguidas pelo método a montante.

Ciente da morosidade das empresas em cumprirem a lei, em fevereiro deste ano, o governo e o Ministério Público estaduais firmaram um acordo com as mineradoras para que elas possam em menor tempo possível realizar o descomissionamento. O Monitoramento do Nesp não conseguiu ter acesso ao acordo. Segundo consta em notícias dos sites do governo e do MP, não há um prazo estipulado para que a obrigação seja cumprida.

“O governo e o Ministério Público legitimaram o descumprimento da lei. Nela é previsto que, quando há um descumprimento igual a esse, as operações das mineradoras são suspensas. Ou seja, o que fizeram foi permitir que as empresas continuem em operações mesmo descumprindo a legislação. Então, as ‘bombas-relógios’ continuam sobre nossas cabeças”, afirmou Maria Tereza Corujo, uma das ambientalistas que ajudaram na elaboração da lei “Mar de Lama Nunca Mais”.

Existe ainda outra violação do texto. Em dezembro de 2019, o governo mineiro, por meio do Conselho Estadual de Política Ambiental, aprovou licença para que a empresa Anglo American alteasse (aumentasse) sua barragem a montante em Alvorada de Minas. Próximo à estrutura vivem dezenas de famílias. A legislação proíbe o alteamento de barragem a montante próxima de comunidades.

Outra licença, concedida pelo Executivo estadual por meio do Copam em 2020, refere-se ao alteamento da barragem da Mina Cuiabá, em Sabará. Pertencente a Anglo Gold, o barramento é próximo de uma das comunidades do município, segundo informam os movimentos sociais.