Conflitos entre o mercado imobiliário, a Câmara dos Vereadores e o direito à cidade: desafios para a implementação do Plano Diretor de Belo Horizonte

Bairro Maria Teresa em Belo Horizonte. Fonte: ALMG/Clarissa Barçante

Por: Assessoria de Monitoramento dos Poderes Públicos e Escola Casa Comum/Nesp – 23/02/2023

Em fevereiro de 2023, começou a vigorar uma das normas mais polêmicas do Plano Diretor de Belo Horizonte, aprovado e regulamentado em 2019: o coeficiente de aproveitamento único e unitário (CA1), estabelecido para a maior parte do território da cidade. Assim, empreendimentos que ultrapassarem o limite de área construída estabelecido no Plano deverão realizar o pagamento da outorga onerosa do direito de construir (OODC). Essa cobrança tem como objetivo custear a construção de moradias para pessoas mais pobres e estimular a desconcentração imobiliária na cidade.

No entanto, empresários do setor imobiliário se articulam na Câmara Municipal para mudar a norma ou adiar sua vigência. O argumento desses empresários é que a outorga onerosa afugentará investimentos e aumentará o custo final da obra, o que poderia levar a uma redução no número de moradias na cidade.

Movimentos sociais, entidades, pesquisadores, servidores municipais têm se posicionado em defesa ao Plano Diretor e informam que qualquer alteração implica em adiar investimentos em infraestrutura, melhorias nas condições habitacionais e garantir a preservação e recuperação do patrimônio ambiental.  

Vamos entender a relação coeficiente de edificação e outorga onerosa do direito de construir

O Plano Diretor de Belo Horizonte alterou para 1 o coeficiente de aproveitamento na maior parte do território da cidade. Esse coeficiente é um índice pelo qual se define a área edificável de um terreno. Por exemplo, em um terreno de 1.000 metros quadrados, ao se multiplicar pelo CA (que é 1), verifica-se que o proprietário poderá construir até 1.000 metros quadrados – 1 x 1.000.

A maior parte das construções não ultrapassa o coeficiente 1. Se você mora em uma casa, divida a área construída da sua casa pela área do terreno e encontre o coeficiente de aproveitamento que você efetivamente utiliza. Muito provavelmente ele será inferior a 1. Os altos coeficientes são utilizados apenas por grandes empreendimentos, como os edifícios de vários pavimentos. Portanto, a aplicação desta regra não irá afetar a maioria dos proprietários. Mas, quem será afetado?

É importante observar que a distribuição desigual de infraestrutura urbana pelas cidades gerou historicamente processos de segregação e de exclusão territorial. Os terrenos urbanos de um mesmo tamanho custam preços muito variados, pois eles dispõem ou não de atributos que qualificam o espaço e valorizam o solo, como, por exemplo, a distância dos equipamentos e serviços, a presença ou não de infraestrutura, a declividade, e o próprio coeficiente de aproveitamento. Isso implica em valorizações diferenciadas de porções do território urbano, supervalorizando algumas áreas, que passam a se tornar inacessíveis a maior parte da população, produzindo cidades fortemente desiguais e pouco sustentáveis.

Nesse sentido, a outorga onerosa do direito de construir pode ser vista como uma medida que busca diminuir as desigualdades territoriais e promover a construção de moradias para pessoas mais pobres. Isso porque os empreendimentos que desejam ultrapassar o coeficiente de aproveitamento poderão fazê-lo, mas serão obrigados a pagar a outorga onerosa. O dinheiro arrecadado com a outorga formará um fundo para custear a construção de moradias de interesse social.

Qual a posição de setores da construção civil e de determinados vereadores

Os críticos da medida argumentam que a outorga onerosa irá afugentar investimentos, em razão, sobretudo, do aumento do custo final da obra. Logo, poderia haver uma redução no número de moradias na cidade. Em conversa com o Monitoramento dos Poderes Públicos, o vereador Bráulio, do Partido Novo, criticou esse dispositivo do plano. Ele, que é corretor imobiliário e engenheiro civil, defende a alteração da legislação. “Acredito que o plano precisa ser melhor calibrado. O custo das outorgas é alto, afasta os investimentos mobiliários. É o que já começa a acontecer. Empreendimentos já estão indo para Nova Lima e Contagem, por exemplo”, afirmou. “Com a outorga, haverá dinheiro para o fundo que custeará casas aos mais pobres. Mas, se você afasta a construção civil da cidade, quem é que vai construir essas casas?”, completou o parlamentar.

Assim, há em curso na Câmara de Vereadores uma proposta para alterar o Plano Diretor: o Projeto 458 de 2022. A matéria, defendida por empresários, quer modificar o prazo de oito anos em que o Plano Diretor não poderá ser modificado. “Entende-se que a revogação do dispositivo se faz necessária, uma vez que a impossibilidade de alteração do Plano Diretor constitui uma limitação à autonomia e atividade do Poder Legislativo e ao pleno exercício do legislador”, dizem os sete parlamentares autores da proposta.

Plano Diretor: instrumento democrático e participativo de construção do direito à cidade

De acordo com lideranças de movimentos sociais, não é a outorga onerosa que causa a falta de moradias na capital. Essa questão deriva dos problemas macroeconômicos do país, como a exclusão de parte da população do acesso ao mercado imobiliário. No limite de sua abrangência, o Plano Diretor tentaria amenizar esses desafios.

Esse tema já foi objeto de uma matéria produzida pelo Monitoramento dos Poderes Públicos em que a privação do direito à moradia que atinge milhares de pessoas em Belo Horizonte está diretamente associada à submissão desse direito à especulação imobiliária praticada, especialmente, por construtoras.

Os técnicos da Subsecretaria de Planejamento Urbano (SUPLAN), elaboraram uma carta dirigida ao Prefeito, aos movimentos sociais e organizações de defesa ao Plano Diretor, repudiando as propostas de alteração da legislação urbanística. Esse documento expressa que:

“Estas propostas estão sendo apresentadas fora do prazo previsto em lei para alterações de conteúdo e sem o devido embasamento técnico e amplo debate público com os diversos setores da sociedade nas Conferências Municipais de Política Urbana, conforme previsto no artigo 86 da Lei Municipal nº 11.181, de 08 de agosto de 2019 e prática democrática consolidada no município desde a Lei 7165/1996.”

O referido artigo preconiza que “a alteração do conteúdo do Plano Diretor deverá observar o prazo mínimo de 8 (oito) anos a partir da entrada em vigor desta lei, sendo vinculada ao projeto de lei resultante dos debates da Conferência Municipal de Política Urbana, ressalvado o disposto nos incisos V e VI do caput do art. 83, nos arts. 99 e 100, no § 2º do art. 107, bem como nos anexos V, VI, VIII, IX e X desta lei”

Além dos técnicos da Subsecretaria de Planejamento Urbano (SUPLAN), vários movimentos sociais e entidades, dentre essas o Nesp, elaboraram um manifesto afirmando que “A iniciativa da Câmara junto com a FIEMG é antidemocrática e é um golpe contra a sociedade, uma vez que privilegia os interesses do setor econômico ligado à indústria da construção civil, em detrimento daqueles do restante da cidade. A outorga onerosa é um instrumento do Plano Diretor que permite a redistribuição de recursos para a construção de uma cidade com justiça social e ambiental”.

É essencial relembrar que este Plano Diretor é resultado de anos de discussão e de construção coletiva. Uma das etapas mais importantes neste processo foi a IV Conferência Municipal de Política Urbana (CMPU), realizada em 2014, com a ampla participação da sociedade civil organizada. Foram eleitos 243 delegados titulares e 243 delegados suplentes, igualmente divididos entre os setores popular, técnico e empresarial.

Redação: Rachel de Castro Almeida (coord. Escola Casa Comum) com colaboração de Marcelo Gomes