Mandatos coletivos e compartilhados em Minas Gerais: ampliação da representação institucional?

Por: Assessoria de Monitoramento dos Poderes Públicos/Nesp – 07/03/2023 – matéria atualizada em 08/03/2023

A Constituição Federal prevê que o poder popular seja exercido “por meio de representantes eleitos ou diretamente”, assim, as instituições políticas formais compartilham a esfera pública com a sociedade civil organizada, por meio de movimentos sociais, ONGs, plebiscito e referendo, orçamento participativo, conselhos e órgãos colegiados, coletivos e outras manifestações de ativismo social e político.

Assim, o exercício do direito político no Brasil não se exaure na máxima “votar e ser votado” da tradicional democracia representativa liberal, visto que mecanismos associados à democracia participativa e deliberativa são previstos em lei. 

As candidaturas coletivas e compartilhadas, que ganharam força nas últimas eleições legislativas no Brasil, desempenham o papel de questionar a política tradicional no seio das instituições formais do Estado, pois, uma vez eleito, o parlamentar, junto ao(s) coparlamentar(es) ou a um grupo de cidadãos, atuam em conjunto durante o mandato.

As diferenças entre as duas modalidades, como sugere a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS), perpassam a unidade ideológica do grupo e seu tamanho. Os mandatos coletivos tendem a possuir um núcleo ideológico rígido, restritos àqueles que compartilham a mesma visão de mundo e costumam ser constituídos por menor agrupamento de pessoas, cujas decisões são tomadas, via de regra, por consenso. Os mandatos compartilhados, por seu turno, costumam dispor de posicionamento ideológico mais abrangente, comportando um amplo número de cidadãos, que participam digitalmente por meio de votações decididas por regra da maioria.

Ambas as modalidades objetivam fortalecer um grupo de interesse. É importante pontuar, todavia, que não há, nesse campo da atuação coletiva, um modelo consolidado no Brasil; são experimentações relativamente recentes.

Apesar de a prática já existir no país desde meados da década de 1990, ela apenas ganhou força significativa a partir da década de 2010, sobretudo com o advento das tecnologias sociais, que propiciaram facilidades graças a novas formas de comunicação. Por se tratar de uma experiência recente, não há um modelo ou definição única que englobe todas as manifestações do fenômeno.

Existem, porém, algumas características comuns a vários casos de exercício coletivo de mandatos. Por exemplo, há divisão do poder decisório sem hierarquia entre o parlamentar registrado e os demais.  Devido às regras do sistema eleitoral brasileiro, que não permite uma chapa plurinominal, a coletividade transfere para um dos integrantes do grupo a incumbência de representá-la nos ambientes formais. No cotidiano, todos do grupo se manifestam por meio de pautas, votações e posicionamento público da chapa, em concordância ao estatuto próprio, exposto e registrado em cartório. Segundo Ana Luiza Backes, “mais do que consultas ao cidadão, a ideia aqui é de vincular o mandato ao grupo, construindo as decisões coletivamente”.

Desse modo, amplia-se a força política de um grupo, cujas pautas tendem a se alinhar às causas identitárias, visando à diversidade e à inclusão de sujeitos historicamente marginalizados, como mulheres, negros, jovens, indígenas, pessoas LGBTQIA+, dentre outros. As candidaturas colaborativas emergem em um contexto de ampliação do debate acerca da baixa representatividade desses grupos, visando à equidade e à justiça social.

Devido às pautas e aos objetivos característicos dos mandatos coletivos no Brasil, eles estão, majoritariamente, vinculados a partidos de esquerda.

Experiências coparlamentares em Minas Gerais

O ex-deputado estadual por Minas Gerais Durval Ângelo (PT) foi pioneiro na implementação de mandatos colaborativos no país. Na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, atuou entre 1995 e 2018. Foram construídos via conselhos consultivos e decisórios, intitulados Conselhos Políticos, os quais eram compostos por dezenas de membros.

Em Belo Horizonte, o movimento “Muitas” foi precursor da modalidade coletiva de candidaturas. Os membros do movimento social, no ensejo de se verem representados institucionalmente, filiaram-se ao PSOL e lançaram 12 candidatos(as) à vereança na Câmara Municipal de Belo Horizonte durante as eleições municipais de 2016.

Áurea Carolina e Cida Falabella foram eleitas nesse contexto. Bella Gonçalves, alocada em 3º lugar nas votações da coligação, tornou-se covereadora. Nasceu, assim, a “Gabinetona”. As duas salas de gabinete do PSOL, na Câmara Municipal de Belo Horizonte, eram separadas por divisórias, que foram derrubadas para formar um grande e único espaço de trabalho. “Gabinetona” foi o termo com que o mandato legislativo do PSOL passou a ser denominado popularmente.

No mesmo ano, a centro-direita e a direita também inovaram em mandatos colaborativos no Legislativo municipal. Gabriel Azevedo – eleito pelo PHS à época –, em Belo Horizonte, e Gustavo Bonafé, eleito pelo PSDB, em Poços de Caldas, utilizaram-se de canais digitais para, junto aos seus eleitores, tomarem decisões por meio de votações on-line em aplicativos elaborados para tal finalidade, acerca de questões legislativas em curso.  

Em 2018, o coletivo “Muitas” se empenhou para a expansão do projeto para o âmbito do Legislativo estadual e federal, resultando nas vitórias de Andréia de Jesus e de Áurea Carolina, respectivamente. Em 2019, Bella Gonçalves assumiu o lugar de Áurea Carolina na Câmara Municipal de Belo Horizonte, pois era sua suplente (a terceira mais votada da coligação nas eleições municipais anteriores).

Nas eleições municipais de 2020, Iza Lourença foi eleita vereadora da capital mineira pelo PSOL, em conjunto com o “Muitas”, cuja operacionalidade decisória é explicada por ela, em entrevista ao Nesp. A vereadora afirma que “as tomadas de decisão coletivas entre os mandatos da Gabinetona acontecem em reuniões semanais, chamadas de Articulação, em que estão presentes representantes das equipes principais dos mandatos e são debatidos os temas principais da semana.”

“Além dos encontros da Articulação, no dia a dia, antes das reuniões plenárias e de comissões, realizamos reuniões de preparação e alinhamento sobre a pauta do dia, debatendo caso a caso cada projeto de lei, sobre como vamos nos posicionar e que temas devemos pautar nas comissões em que atuamos”, continuou a vereadora.

Em 2020, além dos dois mandatos eleitos pelas “Muitas” para compor o Poder Legislativo belo-horizontino, elegeu-se a Coletiva (PT). Tratou-se de candidatura e mandato coletivo de 10 covereadores, reunidos sob o registro eleitoral de Sônia Lansky. Apesar da curta experiência – Lansky renunciou ao cargo após 2 meses de exercício –, a Coletiva evidenciou, dentre as inúmeras pautas defendidas, a necessidade de se construir um sistema público de saúde mais inclusivo e popular.

Diante dos limites desta análise, alguns mandatos de natureza colaborativa podem não ter sido incluídos. Citamos aqueles que apareceram nos estudos de referência do tema.  

Salto do modelo colaborativo nas eleições 2022

As eleições de 2022 representaram um salto de 1.733% de candidaturas coletivas registradas no TSE em relação às eleições gerais anteriores. Foram 220 registros em 2022, em contraposição às 12 apresentadas ao órgão em 2018.

Os estados de São Paulo, Maranhão, Pernambuco, Paraná e Bahia lideraram, respectivamente, com 42, 30, 21, 17 e 14 chapas compartilhadas apresentadas ao TSE. Minas Gerais apresentou 3 candidaturas.

Os partidos de esquerda estiveram à frente (representaram 57% do total), sobretudo, o PSOL, que designou 69 candidaturas coletivas nas últimas eleições gerais, seguido pelo PT (31), Rede (13), PCdoB (13), PDT (9), PSB (8), Patriota (8) e Avante (8).

Segundo levantamento realizado pela Folha de São Paulo, em setembro de 2022, também os partidos de direita e de extrema-direita tiveram expressividade significativa, nas últimas eleições, em campanhas compartilhadas. Estas foram caracterizadas pelo agrupamento de policiais e bombeiros militares, de modo a fortalecer-se contra pautas progressistas, tradicionalmente vinculadas ao espectro da esquerda.

Nessas eleições, das candidaturas coletivas e compartilhadas registradas no TSE, 57% pertenciam a siglas de esquerda e 43% à direita política. Desse modo, a modalidade, encabeçada e caracterizada, em um primeiro momento, por movimentos associados à esquerda, passa a ser incorporada por agrupamentos de direita.

Regulamentação e barreiras à gestão coletiva nas Casas Legislativas

A legislação eleitoral brasileira prevê apenas a candidatura e mandato individual, ou seja, caso seja afastado, o parlamentar cujo nome estará no registro legal da chapa colaborativa não poderá ser substituído por outro do grupo, mas do suplente eleito.

As dificuldades enfrentadas pelos parlamentares de mandato colaborativo decorrem da informalidade da modalidade. As barreiras legais se manifestam desde o período das candidaturas, com o registro no Tribunal Superior Eleitoral – que, muitas vezes, é negado –, até o exercício do mandato, obstado, ocasionalmente, pelo regimento das Assembleias e Câmaras.

Há ainda escassa regulamentação para essas iniciativas. Nos últimos anos, a partir de esforços para sanar tal ausência, a Resolução nº 23.675/2021 do TSE representa um largo passo. Ela adiciona à resolução regulamentadora do registro de candidatos(as) no Brasil (nº 23.609/2019) a menção nominal à coletividade na urna eletrônica, desde que seja acompanhada de identificação clara do candidato representante do grupo. Apesar do avanço, ainda há a individualização da candidatura. Em suma, o registro continua sendo uninominal. 

Quanto aos óbices supracitados, Lourença afirma: “temos essa barreira das próprias regras das casas parlamentares que são muito individualistas e dão muito poder a uma pessoa, ao vereador, ao deputado em si. Na nossa prática política, a gente tenta quebrar com isso, mas a gente esbarra muito em burocracias que são desnecessárias. Precisamos evoluir burocraticamente dentro das casas legislativas para facilitar a atuação dos mandatos coletivos e a efetivação dessa nova forma de fazer política.”

Ademais, a PEC 379/2017 e o PL 4724/2020, que tramitam no Legislativo federal, visa incorporar o mecanismo da governança compartilhada à legislação política.

Redação: Ana Camila Moreira